Traduções Galego/brasileiro e brasileiro/Português

«O Ministério brasileiro da Integração Nacional participou em outubro da 1ª Missão Técnica de Cooperação Transfronteiriça realizada no Eixo Atlântico, quando pode conhecer instrumentos de trabalho e integração entre as regiões de Galícia, na Espanha, e Viana do Castelo, em Portugal.» [https://www.mundolusiada.com.br/acontece/galiza-brasil-conhece-politica-de-fronteira-entre-espanha-e-portugal/]

Olh’à desinformação fresquinha, ó: «Faz sentido dizer português de Portugal e português do Brasil ou português de Angola?»

Bom. Perguntar não ofende, certo? Certo. E responder também não.

Claro que faz todo o sentido! A gramática — ortografia, sintaxe e morfologia — do Português de Angola é a mesma do Português de Portugal (e de Moçambique e de Cabo Verde e da Guiné-Bissau e de São Tomé e Príncipe e de Timor-Leste e até de Macau ou Goa). As diferenças — que o não são de facto — limitam-se a entradas lexicais, dicionarizadas ou não, em consonância com a identidade nacional representativa dos povos que integram as diversas ex-colónias portuguesas nos continentes africano e asiático. Esta realidade comprovável contrasta flagrantemente com a ligeireza da língua nacional “adotada” — apenas tendo como base primeva o Português — pelo meio-continente brasileiro, a metade Leste da América-do-Sul, grosso modo.

Tentar criar uma espécie de analogia por arrombamento entre duas realidades diametralmente opostas é não apenas intelectualmente desonesto como, atalhando argumentos e simplificando adjectivações, tentar promover a verdade incontestável uma patranha do tamanho do planeta Júpiter. Não será por alguém usar um pé-de-cabra mental, no caso através de uma comparação absurda (porque não existe qualquer semelhança entre o Português de Portugal e Angola, por um lado, e a língua brasileira, por outro), que alguém com um mínimo de tino irá conceder o mais ínfimo crédito à “tese” imperialista. Uma coisa não tem nada a ver com a outra. Ponto final. Parágrafo.

Daí a relevância — para variar — da conclusão que o próprio arguido pelo arrombamento formula com inusitada e contra ele mesmo irónica precisão: «As denominações não são neutras nem neutrais (ainda que podem acabar neutralizadas), indicam interesses.» Oh, sim, sim! Ah, pois são, pois são, pois indicam, indicam mesmo!

E resulta claro como água quais são esses interesses, e de quem, e para quê ou porquê. Basta atender à baralhação das designações e também ao efeito retórico pretendido com a operação algébrico-cavernícola: de uma raiz quadrada de um quadrado a multiplicar por um factorial de zero pretende-se extrair a fórmula química da pedra filosofal. Para pendurar ao pescoço, presumo.

E ainda, mais reconhece o próprio, não deixando de continuar a surpreender pela franqueza: «dependerá da capacidade de imposição e de aceitação das/os agentes que nele actuem».

Humilde raciocínio do qual sai com alguma elegância, se bem que também com brutalidade, usando desta vez a técnica bélica da rajada: «o grave é funcionar com a crença de sentir-se donos da língua. Grave, grave é andar “traduzindo” de Portugal para o Brasil e vice-versa. “Traduzem” do português para o português: vergonha para as políticas da língua. É tudo irresponsável para alguns ganharem à custa deste despropósito.»

Não é fantástico? Exactamente! Na mouche! É isso mesmo o que sempre se fez, continua a fazer-se e no futuro se fará, por mais “língua universau” que nos tentem impingir. Bom, se calhar é melhor nem comentar os balázios do indivíduo, à uma para não tirar lustro aos tirinhos, às duas porque sim, quem se atravessar cai logo, varado, lá diz o povo, é cada tiro, cada melro. “Donos da língua”, pim. “É tudo irresponsável”, pam. “Alguns”, pum. Ou seja, ele e os seus compinchas portugueses e brasileiros.

Todo o textículo é de facto um monumento. Esmiuçado seria porventura menos impressionante, estou em crer, (por exemplo, aquela outra relação de causa e efeito em “por causa da internet” é de uma comicidade inimitável) mas já sabemos que os ataques de riso podem ter consequências graves para a saúde, a coisa pode até matar, veja-se o que faz o óxido nitroso, e por conseguinte será decerto melhor deixar a deglutição da pastilha para o venerável leitor. Que não deverá, caso escape ao acesso de gargalhadas, assustar-se com as enormidades sortidas (claro, a rapsódia habitual, a da “Pharmacia”, tinha de constar, como sempre, ele o Inglês e o Francês são línguas muito atrasadinhas, coitadinhas) que o depoente galego vai espalhando, como quem atira pérolas a porcos, toma lá, Reco, atão vá, Miss Piggy.

Não é o remate dele mas eu cá, com o devido respeito, por aqui me fico: «a sobreposição do espanhol é esmagadora.» Como o brasileiro, portanto. Questão de números.

Como se a Língua fosse uma contagem de cabeças de gado: se as reses forem muitas, é uma manada; se forem poucas são descartáveis, matadouro com elas.

Cuidado, cowboy. As vacas investem tanto como os bois. Empurrados para um canto, cercados, tanto o boi como a vaca marram. E marram bem.

″Grave, grave é andar ‘traduzindo’ de Portugal para o Brasil e vice-versa″

www.dn.pt, 17 Maio 2022
Leonídio Paulo Ferreira

 

[legenda de foto] Palestra de Elias Feijó integra ciclo “Diversidade Cultural para o Diálogo e o Desenvolvimento”, organizado pelo Instituto de Altos Estudos da Academia das Ciências de Lisboa.

………………

Faz sentido dizer português de Portugal e português do Brasil ou português de Angola? Não pode caminhar o português para ter cada vez mais variantes nacionais mas ao mesmo tempo, por causa da internet, assistir a certa padronização?

O seu sentido é identificar se há variantes que sejam úteis para alguma cousa. A algumas pessoas podem ser úteis para diferenciar-se ou afastar-se e mesmo podem acabar falando de brasileiro ou angolano. As denominações não são neutras nem neutrais (ainda que podem acabar neutralizadas), indicam interesses. O relevante é que todas as variantes se sintam incluídas no termo e no conceito “português”. A internet pode fomentar certa extensão de usos comuns, como também pode fazer aflorar variantes; dependerá da capacidade de imposição e de aceitação das/os agentes que nele actuem. O importante é não ter medo aos fluxos da língua nem às pessoas e comunidades que a usam. Há suficientes elementos, organizacionais e institucionais, que garantem a sua unidade. A partir de aí, a língua são oceanos onde toda a gente deve sentir o prazer de navegar. Sem patrões! Atenção: sem donos!

A polémica sobre o Acordo Ortográfico faz sentido para si? O Diário de Notícias, que tem mais de século e meio, já seguiu vários acordos. Nas edições mais antigas, por exemplo, existe “Pharmacia”.

Pois é! E, mesmo assim, com uma ortografia bem distante e, em caso, caótica, como é sabido, a intelectualidade galeguista dos século XIX e XX, de Manuel Murguia a Daniel Castelao, reconhecia nela a unidade linguística! Cito um provérbio da minha terra: “melhor um mal acordo que um bom preito“. Eu, galego, numa situação sociolinguística tão precária para o galego, nome que dou à língua que no mundo se conhece como português e, por razão do ofício, um pouco conhecedor do mundo de língua portuguesa, não entro já a discutir as soluções propostas nem, mesmo, as ambiguidades. Quero acordos. Num par de gerações, ninguém se irá lembrar disto; o grave é funcionar com a crença de sentir-se donos da língua. Grave, grave é andar “traduzindo” de Portugal para o Brasil e vice-versa. “Traduzem” do português para o português: vergonha para as políticas da língua. É tudo irresponsável para alguns ganharem à custa deste despropósito.

Até que ponto português e galego são a mesma língua ou já duas línguas diferentes?


E o português do Maranhão? E o da Madeira? Não é o mesmo? Galegamente, respondo: “depende”; entre outras cousas do parâmetro, da perspectiva, da vontade. Entendem-se as pessoas a falarem desde os usos próprios de cada variante? Eis uma língua comum na sua bela variedade. Para mim, o galego é (apesar da sua castelhanização), como conjunto, uma variante do que no mundo conhecemos como português, com traços, por exemplo, comuns ainda com áreas rurais e diferentes do português do eixo Coimbra-Lisboa que vingou… Não há que sair de Portugal para ler páginas e páginas da riqueza da língua comum que evidencia esse continuum, de Aquilino ou de Camilo, de Manuel Ribeiro a Alves Redol. Só que, nos últimos 40 anos, foi imposta, invocando falas populares, praticidade para uma comunidade apenas alfabetizada em espanhol (como todos os escritores e escritoras da contemporaneidade e que, apesar de tudo, viram sempre no português a forma de melhorar o seu galego!) uma norma escrita e uns usos orais que o afastam dessa unidade, com uma ortografia e, em boa medida, morfologia e escolhas léxicas, que o afastam do tronco comum. Mas, a pouco que se raspar com escalpelo amável, aí vem o galego genuíno com toda a sua plenitude galego/portuguesa E apesar da marginalização das propostas reintegracionistas (de defesa da unidade normativa com o mundo de língua portuguesa) estas têm mais vigor do que nunca antes, com muitas entidades populares e transversais e de promoção relevantes (Associação de Estudos Galegos, Associaçom Galega da Língua) ou técnico-científicas (caso da Academia Galega da Língua Portuguesa, reconhecida como observadora na CPLP); e produção científica e escritoras/es com grande reconhecimento, desde os saudosos Guerra da Cal ou Carvalho Calero até a actualidade que representam Moure, Quiroga, Vaqueiro, SánchesArins, Taibo, Sende ou Herrero, para dar apenas alguns nomes.

Na sua experiência de Espanha, como se dá a coexistência de várias línguas? Há bilíngues perfeitos, por exemplo, de galego e espanhol?

Há pessoas bilingues perfeitas, à força não como expressão de livre vontade, que sempre são as da Galiza, as da Catalunha… ou… Vai ser-lhe difícil encontrar casos similares noutros territórios… O que não há é possibilidades de praticar esse bilinguismo de modo equitativo porque a sobreposição do espanhol é esmagadora: nunca tão poucos falantes teve a nossa língua na Galiza como na actualidade… O conflito sempre inclina o barco contra o débil. E o galego é o débil, até nas leis.

Como pode o português ser uma língua de dimensão internacional indo além da questão do simples número de falantes?

Fazendo política e abandonando a ínfula dos números (se quiserem, lembrem que a ONU calcula que, em 30 ou 40 anos, pode haver mais utentes de português na África que no Brasil). Fazendo do português um aliado do conhecimento e do respeito das diversas comunidades nacionais que convivem, com as suas línguas e culturas, no mesmo espaço social. Despregando uma política académica de estudo das diversas realidades das comunidades de língua portuguesa. Trabalhando, conjuntamente, em programas de conhecimento e divulgação exterior. Ou evitando essa prática de traduções a que me referia. Se o português, na sua difusão, se converter em portador de defesa e promoção de direitos humanos, de boas práticas sociais e ambientais, se se colocar na vanguarda de alianças entre comunidades e na atenção aos graves problemas da Humanidade e dos seres vivos, o português será crescentemente a língua amável e integradora que desejamos.

Como imagina as sociedades do futuro? Cada vez mais plurilíngues ou o domínio global do inglês ameaça as outras línguas em campos como a produção científica?

O inglês já é a língua da produção científica, embora não exclusiva. Já está. A questão é como se dá a conhecer cousas e saberes às pessoas; e o papel das línguas aí. Se medirmos pelas tendências actuais, o inglês avança como língua (do) comum; mas também avança a tradução automática que pode minorar muito esse progresso; e, mesmo, integrar outras línguas de raiz não indo-europeia no mundo ocidental… Acho que uma maior consciência ecológica e de travar a deterioração das condições de vida dos seres vivos, fará virar olhos também para a manutenção do que é íntimo e próprio, integrado, sem maior conflito, em âmbitos comunicacionais mais alargados. Por caso, eu defendo, em termos linguísticos, um investimento forte na recuperação e posta em valor de todo o nosso galego genuíno, como possibilidade e oferta dentro do mundo de língua portuguesa, que é a sua garantia de sobrevivência. E, quando aqueles âmbitos demandarem usos linguísticos determinados polos objectivos de comunicação, haverá fórmulas. Eu não falo praticamente nenhuma das línguas que há no mundo e, no entanto, aspiro a comunicar-me de algum modo com os seus utentes. Por tradução, sinais ou estudo. Mas, à partida, cante cada qual na sua língua, que já tentaremos apanhar a comunicação e a beleza pelos meios que à mão tivermos.

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MeetingID: 840 3203 7308

leonidio.ferreira@dn.pt

[O texto transcrito foi publicado em www.dn.pt no dia 17 Maio de 2022 e foi aqui corrigido automaticamente. A imagem de Miss Piggy tem direitos de autor do colectivo “The Muppet Show”. A imagem do asno inteligente é do jornal “Expresso da Linha”. A imagem de topo é de um “site” brasileiro, com legenda constituída por citação desse mesmo “site” (em) brasileiro.]

A ideologia é independente da fala


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