‘Tudo Bons Rapazes’

Actualização em 31.05.23, às 13:35 h:
O vídeo inserido neste post foi apagado na origem (YouTube) por “copyright infringement”: «Video unavailable – This video contains content from Televisao Independente, who has blocked it on copyright grounds». Assim, substituí-o por um dos disponíveis sobre o mesmo assunto. Para ver o trabalho jornalístico original terá de ir ao “site” da TVI — e levar com publicidade a granel, claro — através deste LINK.


Dois conteúdos apenas, texto e vídeo, para que ao menos desta vez não seja necessário de novo “fazer um desenho”.

Na 1.ª parte, alguns extractos de posts anteriores sobre aquilo que em Portugal alguns chamam “alternância democrática”, ou seja, a dança das cadeiras (a que alguns outros chamam tachos) entre os membros da oligarquia dominante que se acoita nos dois partidos políticos do “arco da governação”, o PS e o PSDois.

Na 2.ª parte, uma versão compactada da excelente peça de jornalismo de investigação emitida em 23.05.23 pela TVI sobre o modo de “governar” do chamado “Centrão”: tudo se baseia na negociata sórdida, tudo se desenvolve num ambiente putrefacto, de compadrio descarado, troca de favores, tráfico de influências, golpes palacianos, homens-de-mão e idiotas úteis.

A aparentemente excessiva adjectivação desta introdução é deliberada: todos os qualificativos utilizados encaixam perfeitamente não apenas na espécie de governação da autarquia lisboeta, o objecto da reportagem televisiva, como também servem — até porque Lisboa é só uma das 308 autarquias do país — para o que, se por acaso (ainda) não sucede em algumas das outras, acontecerá certamente por todo o lado, entre Caminha e Vila Real de Santo António.

Ora, por simples exclusão de partes, poderemos certamente concluir que a mesma adjectivação aplica-se plenamente, se não a todas, pelo menos a algumas das restantes áreas em que actuam os gémeos univitelinos da política (isto é, do dinheiro) — e, por maioria de razões, no rol das golpadas a duas mãos está incluído o negócio nojento a que se convencionou chamar “acordo ortográfico”.


Pelo menos no que diz respeito ao “acordo ortográfico”, os dois partidos políticos do “centrão”, o PS e o PSD, são exactamente a mesma coisa; uma coisa esponjosa, para não dizer viscosa, sem a mais remota diferença, sem absolutamente nada que os distinga; de Cavaco Silva (PSD) a Sócrates (PS), o pai da criança e a sopeira da criança (sopeira essa das especializadas em roubar o patrão), passando pelos mais diversos e sinistros elementos da seita acordista (gente do calibre de um tal Nuno Artur Silva, por exemplo, ou do próprio Presidente da República), todos eles estão enterrados até muito acima do pescoço no atoleiro imundo baptizado como AO90 e na forma enviesada como foram aprovadas e decorreram as cerimónias baptismais do horripilante pimpolho. [postArtigo 9.º”]

Como sabemos também, ou ainda melhor, o AO90 foi exclusivamente cozinhado entre políticos indiferenciados, governantes (Cavaco, Lula da Silva, José Sócrates) e deputados do PS e do PSD. [postOs encantos da corrupção“]

Durante o recente evento parlamentar, desta vez promovido pelo PEV, tal espécie de demissão da essência da questão ficou mais uma vez patente: o “Centrão” (PS e PSD), que desde sempre foram aliados tácticos quanto à “adoção” da língua brasileira, debitou as suas comuns (e nojentas) patacoadas para justificar o injustificável; os partidos minoritários alegaram pela enésima vez os motivos políticos, técnicos e também “científicos” para contestar a govenamental política do facto consumado. [postUm covil de meliantes”]

À semelhança de outras iniciativas parlamentares, inclusivamente sobre o AO90 (do PCP e da ILCAO), os diversos partidos limitaram-se a ler o seu texto pré-formatado e a ignorar qualquer outro; no caso do Centrão (PSD e PS), em especial destaque (pela negativa), repetindo as mesmíssimas bojardas, o chorrilho de mentiras e aldrabices que usam há já 30 anos para enganar o povo — o mesmíssimo povo que votou neles e assim autorizou (para gáudio de alguns) que eles se marimbem sistematicamente na memória, na propriedade imaterial colectiva, na História, na Cultura, no património identitário de quem os elegeu. [postTrinta anos de luta“]

Então um dos grupos responsáveis pela golpada de Estado altera agora a Lei… com efeitos retroactivos; e o outro Partido do “arco da governação”, irmão gémeo do primeiro, vota a favor da bambochata; com a abstenção da maior parte dos restantes, então a “proposta” do PS/PSD foi aprovada por esmagadora maioria, quase por unanimidade.
Com umas negociatas nos Passos Perdidos, umas almoçaradas no Gambrinus, uns quantos James Martin’s (Jaime Martins para os mais “patriotas”) servidos generosamente no “pub” do PS/PSD, com mais uns acepipes jeitosos, eis como democraticamente esgrimem nossos dilatados tribunos as gravíssimas questões nacionais, os engulhos “democráticos”, como se regulam as “alternâncias”, como se combina qualquer negócio (negócios nacionais e principalmente negócios estrangeiros) a bem da Nação. [postO fim da istória (2)”]

O problema foi ter-se alguém (Cavaco e Santana) lembrado de ir à gaveta buscar o maldito caderninho e desatado a impingir aquelas badalhoquices às pessoas. (…) Por fim, passados outros 4 anos, dois conhecidíssimos “intelectuais”, um licenciado por FAX (Sócrates) e o outro doutorado pela Universidade de Coimbra (Lula), mandaram o PS (Dupont) e o PSD (Dupond) aprovar a RAR 35/2008.[página FAQ AO90 – 18]

Evidentemente, além destes, que são os principais responsáveis — O Esfíngico com O Bacano (ambos PSD) e O José (PS) com O Doutor (PT, que é como se diz “PS” em “brasileiro”) –, poderíamos apontar muitos outros nomes de políticos envolvidos, sempre em maior, nunca em menor grau, na tramóia a que se convencionou chamar “acordo ortográfico”.
Exercício fastidioso em demasia, porém. Bastará referir, por junto, os deputados que aprovaram a RAR 35/2008 — o real fulcro do problema, como não me canso de repetir. Foi esta parlamentar Resolução o corolário de toda a tramóia, a cereja no topo da vigarice, o truque de saída para a mentira de Estado.
Tentar partidarizar a questão, tapando um olho para só ver culpas nos adversários políticos, é não apenas intelectualmente desonesto como sumamente venenoso para esta Causa, que é nacional e não tribal, que é de todos contra alguns e não de alguns contra este ou aquele.
Atirar sistemática e exclusivamente ao alvo errado, não apenas falhando como até ignorando o verdadeiro cerne do imbróglio, confundir o binómio causa e efeito com o efeito que causa um binómio, é — com a devida vénia — apenas mais do mesmo, ou seja, nada. [postData venia”]

23 May 2023
Fernando Medina é suspeito no caso Tutti Frutti de fugir à transparência, integridade, zelo e boa gestão de dinheiros públicos.

Programa original emitido pela TVI (duração total, 34m:14s): LINK

Línguas e Alfabetos: 2. Soletração

https://www.history.co.uk/history-of-ww2/code-breaking
The Enigma Machine | Image: Shutterstock

E N I G M A

O caso da língua gestual será porventura o exemplo mais ilustrativo daquilo que significa a comunicação entre seres humanos, que motivações específicas as explicam, que finalidades concretas pretendem servir e, partindo dessas motivações e finalidades, como e porquê se distinguem umas das outras.

Sempre evitando pisar os terrenos áridos da linguística e ainda que “traduzindo” quanto possível a nomenclatura técnica (de metalinguagem) envolvida, o que aqui se pretende destacar é o carácter espontâneo — e, portanto, livre — de todas as chamadas línguas naturais, do que resulta, por simples exclusão de partes, que a “língua universau” brasileira (#AO90) não passa de uma asquerosa aberração, passe a redundância.

Ainda que utilizemos para o efeito não apenas as línguas naturais como também as “artificiais”, a constatação ainda assim será a mesma: é absurdo sequer pretender tornar igual aquilo que é por natureza diferente.

https://www.magicalquote.com/movie/the-imitation-game/
«Quando as pessoas falam umas com as outras, nunca dizem o que pretendem dizer. Dizem outra coisa, mas pressupõem que os outros sabem o que elas querem dizer.»

A língua que hoje em dia é comummente utilizada no Brasil tem tanto a ver com a Língua Portuguesa como uma máquina de escrever comum em relação à Enigma, a codificadora utilizada pelas tropas alemãs na II Grande Guerra.

As teclas até podem ser iguais em ambas as máquinas, mas a escrita é diferente porque o significado do que se escreveu numa não tem absolutamente nada a ver com o que resulta na outra. Dois códigos, resultados diferentes.

E então, reza a História, para enfrentar aquele imbróglio em particular surgiu Alan Turing; a sua máquina descodificadora resolveu por fim o enigma da… Enigma. Foi por isso mesmo, segundo alguns historiadores, que os Aliados ganharam a guerra e que Adolf Hitler fez pela primeira vez um favor, isto é, deu um tiro na cabeça.

A máquina de Turing foi em simultâneo predecessora dos actuais computadores mas foi também continuadora, visto que utilizava o mesmo alfabeto da codificadora alemã (em teclado QWERTY), o qual, por seu turno, já era resultado de uma invenção patenteada em 1874 — a máquina de escrever. A linguagem cifrada do lado alemão (Enigma) era descodificada pela equipa de Turing através de determinação de ocorrências e consequente cálculo de probabilidades. Num dos muitos filmes sobre aquele período histórico, aventa-se a hipótese de a chave ter resultado do fecho de todas as mensagens: o conhecidíssimo “Heil Hitler”; significava “over&out”, portanto bastaria fazer corresponder cada uma das letras e deduzir as outras pela sua posição relativa… no alfabeto.

Esse mesmo alfabeto que naquela época, como de resto ainda hoje sucede, obedecia à tabela de comunicações que viria ser oficializada pela Organização Internacional de Aviação Civil.

ICAO – Alfabeto Radiotelefónico

https://unitingaviation.com/news/general-interest/youve-heard-alfa-bravo-charlie-but-do-you-know-where-it-came-from/

ICAO – International Civil Aviation Organization

The ICAO phonetic alphabeth as assigned the 26 code words to the 26 letters of the English alphabet in alphabetical order: Alfa, Bravo, Charlie, Delta, Echo, Foxtrot, Golf, Hotel, India, Juliett, Kilo, Lima, Mike, November, Oscar, Papa, Quebec, Romeo, Sierra, Tango, Uniform, Victor, Whiskey, X-ray, Yankee, Zulu. [Google]

Podemos dizer que, este sim, é o alfabeto de comunicações via rádio utilizado tanto pelos tripulantes portugueses como pelos brasileiros, estejam eles a bordo de um avião, de um navio ou até de uma nave espacial. Pois, pudera, a língua de telecomunicações (como sucede na informática ou na Internet) é o Inglês, não é nem o Mandarim nem o Hindi — apesar de a Índia e a China terem “muitos mais milhões” do que USA, UK e Commonwealth somados — e muito menos é o brasileiro, por mais que julguem alguns tugas que aquilo é que é um gigantone que só visto.

São imensas e muitíssimo diversificadas as aplicações do alfabeto fonético internacional, desde as militares (na NATO, por exemplo) às de comunicações via rádio, incluindo as dos Radioamadores, vulgo “macanudos”, e ainda, em algumas zonas fora de zonas “digitais”, nas comunicações por telefone convencional.

Das duas variantes nacionais do alfabeto da ICAO devemos destacar a utilizada em meios e para fins civis.

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SPA – Dia do Autor português em Português



A Sociedade Portuguesa de autores não assume posição pública sobre a questão do Acordo Ortográfico porque entre os seus mais de 26 000 associados há autores que lhe são favoráveis e autores que liminarmente o renegam por o considerarem errado e totalmente desligado da realidade linguística lusófona. No entanto, a SPA considera que este assunto foi erradamente conduzido pelos vários Estados lusófonos, com destaque para o português que não efectuou qualquer consulta às entidades que legitimamente se poderiam ter pronunciado sobre o assunto, designadamente a própria SPA, o Pen Clube e a Associação Portuguesa de Escritores, entre outros. Só por este motivo a SPA sempre se considerou excluída deste debate e de qualquer escrutínio que envolvesse o assunto. Apesar disso, a SPA promoveu em Janeiro de 2013, um acto de consulta aos seus associados, que representam todas as disciplinas criativas que a instituição abarca e obteve o seguinte expressivo resultado: 145 autores manifestaram-se contra o Acordo Ortográfico e 23 a favor. Legitimado por esta votação, o Conselho de Administração da SPA decidiu que o Acordo Ortográfico nunca seria respeitado na regular produção de textos da instituição, que continuou a reger-se pela norma antiga, sem qualquer abertura às novas regras que poderiam decorrer da vigência do Acordo Ortográfico. Agindo desta forma, a SPA respeita e honra a vontade da significativa maioria dos que se pronunciaram. Entretanto a evolução deste assunto na comunidade lusófona veio demonstrar que não existe margem para outra forma de procedimento e que foram os próprios países que têm português como língua oficial que se encarregam de neutralizar o Acordo Ortográfico e de o excluir da nossa realidade linguística e comunicacional, não obstante as formas de obrigatoriedade geradas pelo sector editorial, sobretudo em relação ao livro escolar e infanto-juvenil, que deverão ser respeitadas sempre que os autores as aceitem.

Nos restantes casos, o Acordo Ortográfico é respeitado e levado à prática sempre que a vontade dos autores se manifeste nesse sentido, enquanto se aguarda que o assunto seja definitivamente encerrado ao nível das relações entre Estados, envolvendo necessariamente países como Angola e Brasil, para além de Portugal, devido à sua dimensão demográfica e à sua expressão cultural internacional. Só se deve pôr de acordo aquilo que justifica e legitima esse acordo. A SPA continua, nos seus documentos, a não se reger por um acordo que mostrou ser insustentável.

José Jorge Letria
(Presidente da Direcção)

Artigo publicado na 1º edição da “Sem Equívocos”.

Línguas e Alfabetos: 1. Gestual

Aveiro Lisboa Faro Aveiro Braga Évora Tavira Ovar Setúbal

O título deste post representa a forma como seria dita a palavra ALFABETOS, via telefone ou rádiotelefonia, pelos trabalhadores do ramo das telecomunicações — em Portugal e nas ex-colónias africanas, depois PALOP — até meados dos anos 90 do século passado. Entretanto as tecnologias da comunicação evoluíram enormemente e, portanto, aquele alfabeto específico entrou em declínio e praticamente desapareceu, o que não quer dizer que esteja de todo extinto.

Uma forma completamente diferente de “soletrar” a mesma palavra ALFABETOS seria utilizando uma das mãos para formar os “gestos” correspondentes no alfabeto da Língua Gestual Portuguesa (LGP).

Sem entrar em grandes pormenores sobre a (ténue) linha de demarcação que separa as línguas verbais das não-verbais, a verdade é que existem muito mais línguas não-verbais do que aquelas que porventura possamos sequer tentar enumerar. Isto, evidentemente, no pressuposto de não atendermos àquilo que distingue os conceitos de língua, em sentido restrito, e de linguagem, em sentido lato.

Se de facto a língua obedece a um código e este implica uma estrutura, obedecendo por conseguinte a regras definidas (umas mais rígidas ou consolidadas do que outras), então linguagem difere de língua na medida em que — apesar de servir a mesma finalidade, ou seja, a comunicação — não está sujeita a normas, regras, códigos, estruturas ou sequer pressupostos. Mas… será exactamente assim?

Por exemplo, o “código da estrada” cumpre todos os requisitos definidores de “língua” (código, regras, prioridades, estrutura) mas não é… uma língua; cumpre uma função comunicativa mas sequer é uma linguagem. Por outro lado — o que demonstra a fluidez de ambos os conceitos –, os sinais e regras de trânsito remetem para… a linguagem jurídica; e esta, pelo menos nos meios académicos e políticos da área e nos meios jurídicos propriamente ditos (tribunais, órgãos criminais), acaba por autonomizar-se de tal forma — em relação à Língua nacional — que acaba por transformar-se numa língua particular, em certa medida autónoma, o “juridiquês”: cidadão que a não domine minimamente não irá entender sequer o que está a dizer o seu advogado de defesa ao meretíssimo juiz, por hipótese em pleno tribunal criminal, quem sabe se num procedimento legal perigoso para a carteira, para a liberdade ou até para a saúde do “arguido”…

E o que vale para o juridiquês vale para, também por exemplo, o futebolês, o politiquês ou qualquer outra das línguas/linguagens que definem — por exemplo — profissão, estatuto, condição social ou modo de vida; logo, um “povo” (comunidade, grupo, estrato) que partilha entre os seus uma língua/linguagem distinta da dos “outros”, ou seja, daqueles que obviamente não se incluem nessa “população” específica.

Não cabe aqui maçar as pessoas com termos técnicos — até por falta de verdadeiros especialistas em cada uma das matérias específicas –, mas apenas traçar um quadro abrangente e o mais simplificado possível das mais diversas formas de comunicação, daí extraindo os factores comuns, identitários e, por conseguinte, definidores do indivíduo enquanto membro de uma comunidade, um povo, uma nação, um país.

Desta contrastação identitária poderão resultar pelo menos algumas conclusões óbvias, a começar pelo facto de a imposição manu militari da “língua universau” brasileira (vulgo, #AO90) não passar de uma aberração, uma manobra puramente política e economicista, um golpe perpetrado por alguns traidores, trânsfugas, vendidos, mercenários tugas.

Para início de conversa, portanto, vejamos o caso mais flagrante: em Portugal existe a Língua Gestual Portuguesa (LGP) enquanto que no Brasil o que há é a Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS). São coisas completamente diferentes e, evidentemente, jamais passaria pela cabeça aos surdos do Brasil impor aos surdos portugueses a sua e a estes “adotar” a dos brasileiros.

LGP – Língua Gestual Portuguesa
https://jornalismofluc.shorthandstories.com/alfabeto/index.html
A Língua Gestual Portuguesa é uma das três línguas oficiais de Portugal, reconhecida na Constituição Portuguesa da República em 1997 [APS]
LIBRAS – Língua Brasileira de Sinais
https://www.pinterest.es/pin/95349717104397984/
Libras é a sigla da Língua Brasileira de Sinais, uma língua de modalidade gestual-visual onde é possível se comunicar através de gestos, expressões faciais e corporais. [“Libras“][Imagem de “Pinterest“]

[Nota: agradecimentos a Maria João Nunes pela colaboração
prestada quanto ao alfabeto rádio/telefone PT.]

[continua]

O sabor da língua

Repete-se agora, ipsis verbis, com exactamente os mesmos pressupostos, um extracto do que já funcionou como introdução a um outro texticulo do mesmo autor, em 15.11.21:

«Na verdade, o brasileiro que assina a peça agora reproduzida (em baixo), tenta fazer-se passar por amigalhaço dos “tugas” em geral e principalmente por “cámárádjinha” dos “tugazinhos”, mas o objectivo real do textículo não passa, como sempre, de servir como panfleto propagandístico enaltecendo os putativos méritos da aniquilação não apenas da Língua Portuguesa escrita, via AO90, essa arma de destruição maciça, como também a eliminação da Língua propriamente dita: depois da ortografia, o léxico, a construção frásica, a morfologia, toda a Gramática, qualquer tipo de norma do Português… incluindo a prosódia (ortoépia), a fonética, a própria acústica articulatória.» [post Cefalópodes de colecção”]

Aparentemente, até poderia ser este um dos muitos adversários do AO90 (reais, não fingidos ou oportunistas), de entre aqueles que, no Brasil, não têm quaisquer pruridos em assumir que a língua nacional da República Federativa é o brasileiro e já não o Português. Pura e simples aparência, creio, se atendermos à profusão de alçapões conceptuais em que o indivíduo mergulha com indisfarçável gozo e também à desfaçatez com que articula uma “tese” estranhíssima e confusa — afirmando qualquer coisa e o seu contrário, por vezes na mesma frase — sobre exactamente coisíssima nenhuma.

Se atendermos apenas ao título da sua publicação mais conhecida (devo confessar a minha ignorância na matéria, aliás nem sei se o dito indivíduo alguma vez terá publicado outro livrito), este ao menos assume de caras que a língua brasileira já ultrapassou a fase da autonomização e, por conseguinte, constitui hoje um corpus linguístico totalmente independente, com o seu próprio léxico e a sua própria, característica, específica (ausência de) gramática.

Infelizmente, como se constata amiúde pelo afã com que os “nossos” governantes persistem em “adotar” uma língua estrangeira, ainda não são nem muitos nem muito claros aqueles que já nem tentam disfarçar a neo-colonização política, económica, linguística e cultural em curso.

O sabor do português falado no Brasil

Sérgio Rodrigues

O último dia 5 de maio, quando se comemorou o Dia Mundial da Língua Portuguesa, foi a deixa para mais uma série de repetições de um clichê enjoativo de grande sucesso em Portugal: “Os brasileiros falam português com açúcar”.

No departamento dos chavões deslavados, trata-se de um dos benignos. Costuma ser empregado em nossa defesa, por assim dizer, para apontar o que haveria de doce e sedutor numa fala cheia de vogais arreganhadas e gerúndios curvilíneos.

Se as escaramuças entre o português lusitano e o português brasileiro têm feito muita fumaça por lá nos últimos anos, alimentadas por fatores como resistência ao Acordo Ortográfico, imigração em massa e sucesso de youtubers, o “português com açúcar” parece uma tentativa — paternalista, mas não se pode ter tudo — de adoçar amarguras.

Simpático ou não, chavão é. De tanto topar com ele — inclusive usado com cômica solenidade por quem acredita enunciar uma sacada nova e genial —, fui ficando intrigado. Preocupado também: se o português falado por 80% dos lusoparlantes do mundo for tão açucarado, periga nossa língua estar diabética.

Duvido que tão elevada taxa de glicose estivesse nos planos do português Eça de Queirós quando lançou as bases desse lugar-comum na revista satírica “As Farpas”, em 1872, ao mencionar “aquela estranha linguagem, que parece português — com açúcar”.

[imagem]
“Engenho de Açúcar” (c. 1808-15), de Koster, imagem presente no livro ‘Adeus, senhor Portugal’ – Reprodução

Sim, o grande escritor se referia ao português falado no Novo Mundo. O texto traçava uma caricatura do “brasileiro”, tipo ridículo de novo-rico — a princípio o retrato de um português bronco que tinha feito fortuna no Brasil e regressado, mas suficientemente ambíguo para que os brasileiros se vissem incluídos no quadro.

E se viram mesmo. Houve protestos, represálias contra portugueses radicados aqui, quase um incidente diplomático — o circo completo, porque as escaramuças vêm de longe. O artigo de Eça é notícia velha, mas dele ficou, agora com sinal positivo, o “português com açúcar”. Por quê?

Será que o português brasileiro soa meloso a ouvidos lusos? Pode ser, mas a prosa literária portuguesa contemporânea tem tolerância bem maior a floreios poético-sentimentais — por aqui entretemos vícios de outra ordem, mas um certo sabor amargo vem predominando.

Quem sabe o “português com açúcar” seja uma referência histórica? Um dos principais produtos, ao lado do ouro com que a colônia sul-americana enriqueceu Portugal até o início do século 19, fruto do trabalho de escravizados, o açúcar teria de alguma forma deixado resíduos na língua falada na terra dos engenhos.

Se a contribuição dos povos trazidos à força da África, sobretudo os do grupo linguístico banto, foi de fato gigante na formação da nossa língua, o açúcar branquinho não é a associação que os estudiosos da matéria preferem.

A professora baiana Yeda Pessoa de Castro, maior autoridade brasileira em africanismos, deu o sugestivo título de “Camões com Dendê” (Topbooks) ao livro em que condensa os estudos de uma vida inteira.

O azeite de dendê, de origem africana, é levemente adocicado, mas é mais do que isso. Vermelho e denso, pode ser encontrado em uma série de pratos típicos da culinária afrobrasileira — salgados e, quase sempre, apimentados também.

[imagem]
Trabalhador colhe cacho de dendê em plantação no Pará – João Wainer –

Fica então a proposta de atualização do clichê eciano: o português brasileiro não tem só açúcar, mas também dendê, sal, pimenta, alho, urucum, tucupi e cachaça, entre outros ingredientes ainda não devidamente catalogados.

[Transcrição integral. Conservada a cacografia brasileira do original.
Destaques e “links” (a verde) meus.]

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