Timor “expetável”

[Campanha de distribuição de manuais escolares pelas escolas das montanhas. Zona Oeste, ano lectivo 2000-2001. “Sítio de Timor” (1999-2004): Álbum Bravenet.]
 

Neste tipo de artigos, a manusear necessariamente com pinças mentais, convém munir-se a gente de ao menos algum conhecimento de causa.

A começar pelo facto de deixar claro que pretender encaixar uma terra como Timor-Leste nos padrões “civilizacionais” europeus ou ocidentais é — encurtando razões — profundamente estúpido. E pretensioso, aliás, já que denota um indisfarçável lastro tardo-colonialista. Timor-Leste não tem absolutamente nada a ver, em aspecto algum, com o que no Ocidente em geral se utiliza para etiquetar nações, povos, modos de vida e culturas… ocidentais. Timor-Leste é Timor-Leste, não um enxerto europeu ou americano (ou australiano ou chinês). Os timorenses têm a sua própria Cultura, completamente distinta de qualquer outra, e daí, portanto, a sua Língua nacional ser também algo único: num território pouco maior do que o do Algarve coexistem “15 línguas nacionais” (mais variantes), duas línguas oficiais e ainda o Bahasa*** como língua-franca.

Em Timor-Leste, de acordo com a Constituição do país, o Tétum, que sofreu influências da Língua Portuguesa (uma Língua de elite em Timor), é a Língua Nacional, mas também Língua Oficial, que partilha com o Português. A estas, juntam-se mais as seguintes quinze Línguas Nacionais faladas pelo povo timorense: Ataurense, Baiqueno, Becais, Búnaque, Cauaimina, Fataluco, Galóli, Habo, Idalaca, Lovaia, Macalero, Macassai, Mambai, Quémaque e Tocodede. [blog “O Lugar da Língua Portuguesa“]

As considerações contidas neste artigalho do “Público”, totalmente desligadas da realidade, não passam por conseguinte de (mais) um folheto, inconsequente e frívolo, das perspectivas mais comuns de qualquer burocrata especializado em pedagogia de gabinete.
É certo que poderia ser muito pior, mesmo propagandístico e descarado, como tantos outros que vamos lendo por aí. Pelo menos deste autor e pelo menos aparentemente, o arrazoado — que poderia valer para o ensino em Chelas, por exemplo, mas não para o que existe em Timor — não tresanda, como de costume, a pura e dura propaganda brasileirista.
 

blog “Perspectivas” https://espectivas.wordpress.com/

Nada de ilusões, porém. Escrever com a cacografia brasileira sobre o ensino da Língua Portuguesa em Timor-Leste poderia muito bem ser (será?) uma forma subtil (“sútchiu”, em brasileiro) de passar a “mensagem”, preparando o terreno para que o Itamarati venha a tomar posse administrativa de mais um porta-aviões, este encalhado no Sudeste asiático.

Ao fim e ao cabo, vejamos, para os acordistas a coisa já nem é só “expetável”.

Que futuro para a língua portuguesa em Timor-Leste?

www.publico.pt, 04.04.23

Timor-Leste não só é um dos mais jovens países ao nível político — independência proclamada em 1975 e confirmada em 2002, depois dos 24 anos de ocupação da Indonésia, do referendo de 1999 que sufragou, por uma maioria muito expressiva, a autonomia e dos anos de transição administrativa das Nações Unidas —, como também o é na pirâmide demográfica dos países lusófonos, com uma percentagem significativa (34,45%) de população jovem, segundo dados de 2023.

Se este país fosse invocado pela obra ímpar de Ruy Cinatti, o eterno e sensível Senhor da Chuva, falaria de uma realidade bem diferente, sobretudo de montanhas, pessoas, tradições, casas e paisagens deslumbrantes. Porém, focar-me-ei na língua portuguesa.

Em linha com a Constituição da República Democrática de Timor-Leste quanto à identificação das línguas oficiais, a Lei de Bases da Educação, de 2008, determina que “as línguas de ensino do sistema educativo timorense são o tétum e o português”.

Por sua vez, os normativos sobre o currículo nacional dos ensinos básico e secundário instituem a progressão linguística destas duas línguas de ensino, com mais tempo lectivo para o Tétum do 1.º ao 7.º ano, passando esse estatuto para o Português no 8.º ano e seguintes.

Sendo um território marcado por uma grande diversidade linguística (23 línguas maternas, variantes do Tétum, língua inglesa e língua indonésia), a abordagem da aprendizagem escolar constitui um dos principais problemas educativos de Timor-Leste, pois a progressividade das duas línguas não se verifica nas escolas, mantendo-se dominante o Tétum, na variante do Tétum Praça, ao mesmo tempo que impera a língua indonésia no quotidiano das famílias, nos programas de televisão mais vistos e no comércio local.

Apesar de existirem alterações significativas em curso, poder-se-á afirmar com toda a convicção que é diminuta a percentagem da população timorense que fala as duas línguas oficiais. O facto de o Português ser uma língua não materna traz dificuldades acrescidas, não sendo tão eficiente o seu uso na comunicação entre os timorenses, nem nas escolas, onde a tendência para a captação da oralidade se sobrepõe ao domínio da leitura e da escrita.

Verifica-se, também, uma certa desvalorização do Português pelas organizações internacionais, incluindo as organizações não-governamentais, cuja preferência na redacção de relatórios e na produção de materiais educativos vai para o Inglês e para o Tétum, como se o Português não fosse uma língua oficial em Timor-Leste.

Mesmo assim, a língua portuguesa é falada no território, principalmente pelos mais velhos que tiveram a sua instrução escolar anterior a 1975 ou pelos mais novos que estiveram ou estão na Escola Portuguesa de Díli ou nas Escolas CAFE (Centro de Aprendizagem e Formação Escolar).

Estas escolas são a actual frente mais visível da cooperação de Portugal com Timor-Leste, tendo sido criadas com o objectivo de replicar a Escola Portuguesa de Díli em cada um dos 14 municípios (o de Ataúro é o mais recente, estando previsto para breve o seu funcionamento) e, por isso, foram denominadas, de 2012 a 2014, Escolas de Referência.

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O “Público” e a sua nova Direcção (ou será “direção?)

Os colunistas e o novo acordo ortográfico

O jornal continuará a publicar textos de colunistas e convidados que seguem o novo acordo ortográfico.

José Manuel Barata-Feyo
17 de Setembro de 2022
«Uma das razões que levam o leitor Elysio Correia Ribeiro “a assinar e a ler diariamente o PÚBLICO é a de não ser agredido com o português (?) do ‘aborto’ ortográfico”. “Neste aspecto, o jornal é caso único – julgo – no confrangedor panorama da imprensa escrita que, sem ser a isso obrigada, correu a cumprir uma lei que, ainda por cima, foi adoptada à revelia do que ela própria afirmava (tinha de ser implementada por todos os países lusófonos) por uma classe política farisaica e ignorante, e contra a opinião de praticamente todos os que profissionalmente manejam a língua.”»

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É um caso sui generis no panorama da imprensa portuguesa generalista de implantação nacional. Existem outros jornais que igualmente recusam a cacografia brasileira — como o “Novo” ou “O Diabo” ou o “Página Um” –, mas foi o “Público” aquele que há mais tempo declarou expressamente a sua determinação em continuar a ir para as bancas (e para a Internet) sempre redigido em Português; inclusivamente, e isto não é coisa pouca, dadas as óbvias implicações políticas da decisão, a Direcção lançou em 2015 a edição “Público – Brasil”, igualmente no «português escrito em Portugal».

Desde pelo menos 2011, sucederam-se naquele jornal os artigos denunciando o estropício, tanto de jornalistas “da casa” como de colaboradores ou colunistas externos e ainda um sem número de artigos de opinião dos autores mais diversos, de “figuras públicas” — representando, no seu conjunto, todo o espectro partidário — ao mais comum dos leitores — também transversalmente, de diversas origens, estatutos sociais e grau de escolaridade ou académico.

De entre todos os artigos ali publicados sobre o #AO90, a maioria dos quais foram aqui reproduzidos, merece especial destaque Nuno Pacheco, director adjunto e (evidentemente) membro do Conselho de Redacção do jornal; apenas deste autor, é possível contar 51 “posts” no site da ILCAO (12.09.200817.06.2015) e outros 82 aqui mesmo, no Apartado. Nota de relevo ainda para o comentador político Pacheco Pereira que, além de diversos textos sobre o assunto, cunhou a expressão porventura mais certeira e exacta para descrever a língua univérrssáu e suas consequências: «um Acordo Ortográfico que se pretende impor manu militari».

Pois agora o que se prefigura na Redacção do “Público”, num futuro bem mais imediato do que seria previsível há apenas alguns meses, é a mudança do Director. Com tudo aquilo que essa mudança poderá implicar, evidentemente. Para já, o que sabemos sobre as orientações redactoriais e, por consequência, a respeito do que poderá (ou não) vir a suceder quanto ao AO90, é que… não sabemos coisa nenhuma; sobre isso, pelo menos até ao momento, nem uma palavra. O que não costuma ser bom prenúncio; por definição, o silêncio precede algo de muito “barulhento”…

Bom, sejamos optimistas. Como se diz em brasileiro, pensámentu pôzitchivu

(Qui orrô, mi adisculpi, viu?)

Conviria, porém, mesmo tentando ver a coisa pelo lado bom, não dar uma de anjinhos. “Conteúdos editoriais” e “conteúdos comerciais”, especialmente quando concatenados ambos os termos na mesma frase, não aparenta de facto — nada, nada, nadinha — ser bom prenúncio. Em 2020, que se saiba — e pouco ou nada mais se soube sobre o assunto daí em diante –, o Governo, com um gesto magnânimo e extremamente generoso, espalhou 15 milhões pelas redacções e, principalmente, pelas “redações” de jornais, rádios e canais de TV; para pagar “publicidade institucional”, dizem.

Tais “ajudas”, depreende-se, irão somar-se à mesmíssima publicidade institucional que toca aos OCS de forma regular: éditos, avisos, alertas, concursos etc. Aliás, essa regularidade é uma das mais importantes fontes de financiamento no ramo, chegando em alguns casos a ser a única receita para além das vendas do produto jornalístico em si, em papel ou por meios digitais, neste caso com publicidade paga também pelo sector empresarial privado.

Bem vistas as coisas, assim como sucede quanto ao próprio acordo da língua brasileira, isto é tudo uma questão de dinheiro. O qual, como sabemos, não tem nem cor (bem, as notas de dólar, se calhar por serem verdes, gozam das preferências gerais) nem opinião nem credo e nem mesmo nacionalidade. Como dizia já não sei quem, “um escudo é um escudo”. Agora, o escudo até já nem tem cotação cambial, mas não faz mal, se não houver dólares pode ser em euros, ou em francos suíços, vá, no problem, isso troca-se numa data de offshores.

Não há-de ser nada. Fiemo-nos noutra coisa sem ser na virgem. Decerto o “Público”, onde é tudo boa rapaziada, estará, ao invés do que sucede com a maioria dos media tugas, imune a qualquer OPA governamental. O que significará, por conseguinte, que poderemos continuar a ler aquilo em paz e sossego, sem conspurcações brasileirófonas.

Esperemos que ao menos desta vez haja um escrutínio realmente democrático e que naquela Redacção ninguém acabe a votar sozinho.

Casamento de novo director do Público com deputada do PS levanta reservas

Margarida Davim
revista “Sábado”, 10 de Abril de 2023
www.sabado.pt

Conselho de Redacção do Público deu parecer positivo ao nome de David Pontes para substituir Manuel Carvalho. Mas, em declaração de voto, duas jornalistas defendem que preocupação quanto às fronteiras entre conteúdos editoriais e comerciais e casamento com socialista deviam ser “motivo para dar um parecer negativo à indicação” do novo director.

O jornal Público já tem novo director indigitado. David Pontes sucederá a Manuel Carvalho quando, a 1 de Junho, este sair da direcção do diário da Sonae. O nome escolhido pela administração teve o parecer positivo do Conselho de Redacção. Mas os jornalistas que compõem este órgão deixaram, nesse texto, claras as reservas que Pontes lhes suscita.

Uma das preocupações dos jornalistas do Público é a de que esta nomeação não dê garantias de uma separação entre os conteúdos editoriais e os comerciais.

“Atendendo à natureza das funções recentemente desempenhadas por David Pontes nesta e noutras empresas de comunicação social, o CR entende, porém, ser imperioso sublinhar que o novo director deve garantir e zelar por uma clara distinção entre as esferas editorial e comercial e reforçar os mecanismos de transparência do jornal quanto aos conteúdos apoiados e aos conteúdos promovidos“, lê-se no parecer a que a SÁBADO teve acesso e que foi redigido já depois de Pontes ter respondido a um pedido de esclarecimentos a este órgão.

“A independência e o rigor informativo são os principais activos desta redacção e devem constituir prioridade para a nova direcção editorial, à qual compete a missão de preservar a marca Público, salvaguardando-a da dispersão e da descaracterização que podem advir da multiplicação de chancelas e projectos”, frisam o Conselho de Redacção.

Director deve abster-se de escrever sobre temas em que é “parte interessada”

Os membros do Conselho de Redacção alertam ainda para a necessidade de o novo director evitar conflitos de interesse nas matérias sobre as quais escreve, defendendo que “os jornalistas do Público, e por maioria de razão o seu director, devem inibir-se de escrever sobre questões em que possam ser considerados parte interessada e recomendam a esse respeito uma política de transparência perante os leitores”.

Em causa está o casamento de David Pontes com a deputada do PS Carla Sousa. De resto, este parecer tem uma declaração de voto assinada por duas jornalistas que entendem que esta circunstância e as dúvidas sobre a separação entre o que são conteúdos jornalísticos e conteúdos comerciais seriam por si só suficientes para o Conselho de Redacção chumbar o nome de Pontes.

“Subscrevemos as reservas apontadas pelos nossos colegas do CR, que partilhamos, mas, no nosso entender, estas são motivo para dar um parecer negativo à indicação de David Pontes para novo director do Público”, escrevem numa declaração de voto, na qual expressam preocupação pela “frágil delimitação das fronteiras entre os conteúdos editoriais e os conteúdos apoiados, a qual ameaça os princípios fundadores do Público e retira o foco do jornalismo a que nos devemos dedicar”.

A declaração de voto defende ainda que, sendo David Pontes casado com uma deputada do PS, é “inadequado que não considere que se deva abster de fazer comentário político, evitando assim a suspeição sobre óbvios conflitos de interesses”.
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«Atrás dos tempos vêm tempos» [Ana Cristina Leonardo, “Público” 31.03.23]

Atrás dos tempos vêm tempos

Ana Cristina Leonardo

“Público”, 31.03.23

Se o mais provável; à medida que envelhecemos, é vermos aumentar o desajuste entre nós e mundo — escrevo provável, não inevitável — existem acontecimentos ou factos ou realidades que nos ilibam da acusação de “velhos do Restelo”, essa figura camoniana de um pessimismo “só de experiência feito”, talvez injustamente desamada.

Relembremos Billy Wilder, o homem que ao realizar Some Like it Hot (Quanto Mais Quente Melhor, 1959) ou Avanti (Amor à Italiana, 1972) terá feito mais pela liberalização dos costumes do que os três longos dias de pândega em Woodstock.

Apesar disso, diria ele, cumpridos os seus setenta anos: “They say Wilder is out of touch with his times. Frankly, | regard it as a compliment. Who the hell wants to be in touch with these times?”

Mais perto de nós, infelizmente também morto, Leonard Cohen, embora sem se congratular por ter estado alguma vez em dessintonia com os tempos, nem por isso deixaria de cascar no movimento hippie seu contemporâneo, numa entrevista que deu ao crítico João Lisboa corria o ano de 1994: “Depois apareceram os hippies que não me interessaram, sobretudo quando começaram a poluir os rios e a deixar lixo por todo o lado, quando iam para o campo adorar Deus e a Natureza, Eram péssimos campistas. Eu fui escuteiro, logo, posso dizê-lo”.

É da circunstância de serem invariavelmente verberadores que se extrai a comicidade dos velhos Marretas, mas The Muppets show vivia precisamente do exagero, do burlesco e do humor. Na vida real, os críticos arraigados e avançados na idade não costumam ter graça nenhuma. Dito isto, por seu turno, os bajuladores de toda e qualquer novidade avançados na idade são muitas vezes patéticos. Quando não danosos.

Veja-se o caso do argumento muito em voga na época — e usado por gente com mais do que idade para ter juízo — que insistiu em casar à contestação ao Acordo Ortográfico de 1990 da Língua Portuguesa com uma posição geracional. Jovens pelo sim. Velhos pelo não. Viu-se.

Os seus maiores promotores e defensores, já na altura somando décadas consideráveis, João Malaca Casteleiro, por Portugal, e Antônio Houaiss, pelo Brasil, foram, entretanto, fazer companhia a Billy Wilder e Leonard Cohen, o primeiro em 2020 com 83 primaveras, o segundo em 1999 com idade idêntica. E mesmo descontando o tempo decorrido entre a aprovação do AO pelos deputados da República e a morte dos dois linguistas, mostra-se difícil imaginá-los em 1999 a hastear o texto do Acordo com o mesmo sorriso largo com que o então jovem Daniel Cohn-Bendit encarou a cova dos leões em Maio de 68.

Escusado será dizer que jovens e velhos podem ser igualmente irritantes. Sobre o assunto, nada como ler Diário da Guerra aos Porcos do argentino Adolfo Bioy Casares (Cavalo de Ferro, 22 edição, 2015). E que me perdoem se por acaso repito a recomendação: é assacá-la à idade.

Por falar em Argentina e em Adolfo Bioy Casares, leio que quem morreu foi Maria Kodama, mulher e herdeira de Jorge Luis Borges (grande amigo de Casares), cujos traços asiáticos eram menos acentuados dos que os de Yoko Ono — o que é natural, dado que ambos, mãe e pai de Yoko eram japoneses, enquanto Kodama nasceu de pai alemão e mãe natural de Tóquio imigrada para Buenos Aires. Foi ao ler a notícia da sua morte que me lembrei de um apaixonado espanhol coleccionista de Borges que há muitos, muitos anos — ainda existia a Livraria Castil de Alvalade em Lisboa e o livreiro Miguel Bastos não se tinha apagado para sempre numa malfadada estrada a caminho de Coruche –, após comprar todas as traduções em português do autor de O Jardim dos Caminhos que se Bifurcam, ficou por ali, indiferente ao pó dos livros e ao meu horário de saída, queixando-se de Kodama com uma veemência que Maomé não pôs na condenação do toucinho, nem os fãs dos Beatles nas críticas a Yoko Ono ou outros descerebrados a Salinger.

Todo este intróito, que vai longo e saiu particularmente enlutado, serve, claro, para me antecipar às acusações de catastrofista.

Porque o caso é este: ao mesmo tempo que em Portugal — em Vizela, mais precisamente — se inaugura uma mais do que ridícula estátua a António Guterres — ficamos sem palavras para descrever aquele susto de quatrocentos quilos e dois metros de altura encomendado pela Câmara Municipal a uma empresa amiga, um Guterres com papeira, calças a fugir à polícia e raquitismo nas extremidades –, do outro lado do mundo, o extraordinário David de Miguel Ângelo causa polémica numa escola cristã da Florida, levando à demissão da directora.

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O elefante e a formiga brincam às reciprocidades

Artigo 11. º

Em regime de reciprocidade, são isentos de toda e qualquer taxa de residência os nacionais de uma das Partes Contratantes residentes no território da outra Parte Contratante.

Estatuto de igualdade entre portugueses e brasileiros
Artigo 12.º

Os portugueses no Brasil e os brasileiros em Portugal, beneficiários do estatuto de igualdade, gozarão dos mesmos direitos e estarão sujeitos aos mesmos deveres dos nacionais desses Estados, nos termos e condições dos artigos seguintes.



Já não bastava a instalação em massa de “advogados” brasileiros em Portugal, agora “temos de” levar também com as disputas entre eles, os problemas que afectam os causídicos lá pelo sertão e arredores.

Estão contabilizados 10%: um em cada dez dos “defensores” inscritos na Ordem portuguesa são brasileiros; isto segundo as estatísticas oficiais, é claro, às quais devemos sempre conceder a “elasticidade” inerente às conveniências políticas da situação vigente, ou seja, é tudo “calculado” com imenso atraso e sempre a “olhómetro” (ou a “olho por cento”); passa-se quanto aos causídicos o que de igual modo sucederá decerto, até por maioria de razões, com o contingente geral.

Permanece o mistério que, afinal, de misterioso tem coisa nenhuma: ninguém se apercebe, ou sequer se inquieta, ao menos se interroga? Nada de nada? Isto é mesmo tudo ou à vontade ou à vontadinha? E nem um pio?

Não será suficientemente claro o título da notícia «Ordem dos Advogados portuguesa quer restringir acesso directo a advogados brasileiros», em grandes parangonas?

E sobre a treta da “reciprocidade”, também ninguém tem nada a dizer? Com que autoridade, em nome ou por alminha de quem assinou a OA portuguesa um “acordo” de “reciprocidade” com os congéneres brasileiros? Porquê só com os brasileiros? Ou, de novo substituindo-se ao Estado, assinaram convénios semelhantes com algum dos PALOP? Pergunta meramente retórica e decorativa, bem entendido.

Mesmo usando os números das “fontes” oficiais:

2000 advogados portugueses para 214,3 milhões de brasileiros = 0,0009333% ≅ 0,0009%

3170 advogados brasileiros para 10,3 milhões de portugueses = 0,030777% ≅ 0,031%

Mas que linda “reciprocidade”, está visto.

E o que diabo temos nós a ver com as tricas lá da fábrica de advogados brasileiros?

Que aqueles ilustres patrões, digo, patronos aprovados nos exames do Secundário chegam aqui e pronto, é só tomar posse e começar a “faturar”, já se sabia, Que os estagiários portugueses nem tugem nem mugem, porque pelos vistos até nem querem ser advogados nem nada, andaram a estudar Direito porque não tinham vaga em Belas Artes, ou assim, ah, pois, dessa também estamos fartos de saber.

Mas esta rapsódia, senhores, o que é, ao que vem isto agora?

A bandeira nacional invertida no Brasil não é crime? Ah, claro, é só mais uma tradução literal do Inglês americano para o brasileiro: isstréssi.

Tem até um desembargador que vive em Portugal e só se comunica pela Internet

Os advogados brasileiros sofrem o castigo de não serem recebidos pelos magistrados de todos os graus. Tem até um que requer uma viagem transatlântica.

Técio Lins e Silva
“Público”, 5 de Abril de 2023

Pensei que depois de 60 anos de militância na advocacia saberia dizer para quê servem os advogados.

Dizem que foi a pandemia! Dizem.

Mas esse pretexto continua vigendo em todos os quadrantes da Justiça brasileira.

Dizem também que os advogados incomodam, atrapalham, perturbam a calma do judiciário, pois estão sempre a reivindicar que os poderes da Justiça funcionem.

É verdade que há profissionais que não honram a profissão. Também pudera, há mais faculdades de Direito no Brasil do que todas somadas no mundo. Antigamente tinha até “faculdade de fim de semana”. Verdade (acho que isso acabou…).

Durante a ditadura militar, de 1964 a 1985, o Brasil licenciou centenas de faculdades de Direito sem nenhuma condição pedagógica, sem biblioteca e sem professores capacitados para o ofício. Somos o produto dessa realidade. Infelizmente.

Também é verdade que há profissionais diplomados e inscritos na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) sem a menor formação para exercer o ofício. E sem noção do papel que representam na sociedade. Somamos mais de um milhão de inscritos na Ordem, fora os que não passaram no exame da OAB ou que desistiram da profissão.

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Mais um textículo de Roldão

Crime de incitamento ao ódio e à violência

O chamado crime de “discurso de ódio” consiste na conduta punível de alguém que, através de meio de divulgação pública, provoque ou incite a prática de actos de violência, difamação, injúria, ou ameaça a pessoas ou grupos de pessoas, nomeadamente em razão da sua etnia, nacionalidade, religião, género, orientação sexual ou deficiência.
1. O crime de incitamento ao ódio e à violência encontra-se previsto no n.º 2 do artigo 240.º do Código Penal e é punido com pena de prisão de 6 meses a 5 anos.
2. A criminalização não afecta condutas que decorram em privado e que envolvam a prática dos factos descritos nas alíneas do n.º 2 do artigo 240.º. A tipificação do ilícito penal exige que a conduta punível se realize no espaço público e envolva qualquer meio destinado a divulgação, o que supõe o uso do discurso verbal, o panfleto, a grafitagem, a afixação de cartazes, a utilização da imprensa e de sítios web, bem como a colocação de mensagens na internet fora do âmbito de grupos fechados.
3. Constitui pressuposto da prática do crime que o uso público dos referidos meios de divulgação pelo agente se destine a fazer “a apologia, negação ou banalização grosseira de crimes de genocídio, guerra ou contra a paz e a humanidade”.
4. É exigível que o uso dos meios de divulgação destinados a fazer a apologia ou a negação de crimes contra a paz e a humanidade tenham um efeito ou resultado discriminatório concreto, traduzido na provocação de actos de violência, na prática dos crimes de injúria ou difamação, na ameaça e no incitamento à violência ou ódio contra “pessoa ou grupo de pessoas por causa da sua raça, cor, origem étnica ou nacional, ascendência, religião, sexo, orientação sexual, identidade de género ou deficiência física ou psíquica”. [DRE]

De Roldão ataca de novo.

Com a cassette que já toda a gente ouviu e leu até à mais absoluta exaustão, usando sempre os mesmos chavões, o mesmo paleio “mimimi” (como se diz em brasileiro, a língua dela) de obsessiva vitimização, repetindo os lugares-comuns da ordem (nós, os portugueses, fomos lá para a terra dela “roubar” o ouro e “escravizar” os pobrezinhos, coitadinhos), martelando clichés da narrativa woke mais empedernida, sempre a pretexto da colonização portuguesa mas nunca (ou muito mal) disfarçando a sua profunda aversão a tudo o que lhe cheire a “pôrrtuga” e a “pôrrtugáu”. “Pôrrtugáu” esse, que, nem de propósito, é a “terrinha” onde de Roldão aterrou há pelo menos uma década e — certamente com imenso sacrifício pessoal, por ter de viver no meio dos selvagens tugas — onde ainda hoje permanece, ao que parece com grande soma de inconvenientes, a começar por uma permanente irritação — ou será ódio, abreviando a substantivação — para com toda a gente que não partilhe da sua “opinião”; ou seja, toda a gente menos ela própria e, quando muito, os camaradas da sua seita de “indignados” profissionais, esse grupo de extremistas… mas “não muito”.

No primeiro, o “motivo” do venenoso paleio desta setora foi a Porto Editora. Neste segundo round atira-se Roldão de roldão àquilo que julga ser uma outra editora, à conta de um manual escolar cujo título agora não interessa para nada e o conteúdo ainda menos. O que para o caso interessa, isso sim, é — espremendo apenas um módico de neurónios do hemisfério esquerdo — fazer notar o seguinte: esta Raiz Editora não é propriamente “outra”, diferente, independente da Porto Editora. Pelo contrário: faz parte do grupo empresarial de editoras que integram a… Porto Editora.


A setora não fez os TPC, aiaiaiai, setora.

Ou será alguma embirração especificamente quanto àquele grupo editorial? Mas olhe, setora, que a Porto Editora é do mais acordista que há por cá, até se apressaram a “adotar” a sua querida língua brasileira — com efeitos retroactivos e tudo.

Recorde-se, a propósito, que foi a Porto Editora um dos principais interessados (e beneficiários) no contrato milionário assinado entre as editoras e o Governo que garantiu indemnizações colossais em caso de “reversão” da “adoção” da língua brasileira pelo Estado português como língua nacional.

Tudo isto, mesmo dando de barato a situação profissional, económica e de estatuto social da autora dos dois textículos, o que agora se transcreve e o anterior, deixará porventura ainda mais confuso — ou perplexo — quem se der à maçada de ler ou um ou outro ou ambos: mas o que pretende ela, afinal? Porquê e para quê este infindável chorrilho de insultos, esta tentativa sistemática de emporcalhar a História de Portugal, todo este indisfarçável ódio aos colonizadores (os “brancos”) que exploraram (“roubaram”) o Brasil e que “escravizaram” o “povo brasileiro”?

O que entende o Estado português, ao menos enquanto conceito, por “ódio”? A perversão absoluta do ónus da prova (basta a alegação?, basta “mandar umas bocas”?), o enviesamento da verdade histórica — ou da verdade tout court –, o enxovalho público (e reiterado) dos portugueses enquanto povo, nada interessa para coisa alguma? Ou depende de quem profere as atoardas, da sua posição relativa na pirâmide social?

O normal, como sucede por regra entre as pessoas normais, isto é, educadas e com alguma cultura, incluindo a democrática, seria ao menos alguém reagir, dizer algo. Já sabemos que nem todos os portugueses têm, infelizmente, um mínimo de hombridade; mas existem ainda assim alguns pouco amigos de “levar insultos para casa”.

Ou então… sim, pensando melhor, talvez seja isso. O que esta fulaninha diz interessa tanto como ela mesma, ou seja, nada. Que vá regurgitar o seu ódio alhures.

ódio

ódio | n. m.

ó·di·o

(latim odium, -ii, ódio, aversão, ressentimento, vontade, animosidade, irritação, desagrado, insolência)

nome masculino

1. Sentimento de intensa animosidade relativamente a algo ou alguém, geralmente motivado por antipatia, ofensa, ressentimento ou raiva. = AVERSÃO, REPULSAAMIZADE, AMOR

2. Objecto desse sentimento.

“ódio”, in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2021, https://dicionario.priberam.org/%C3%B3dio [consultado em 01-04-2023].


Era uma vez…” o manual colonial da Raiz Editora

Cristina Roldão
“Público”, 29.03.22

No quadro do Dia Internacional em Memória das Vítimas da Escravatura e do Tráfico Transatlântico de Escravos, no passado 25 de Março, António Guterres tomou posições que muitos classificariam de woke. Reconheceu que “o legado do comércio transatlântico de escravos nos persegue até hoje”, colocando entraves ao desenvolvimento do continente africano “por séculos” e estando na base de “disparidades de riqueza, rendimentos, saúde, educação e oportunidades” que afectam a vida dos afro-descendentes bem como do “ódio da supremacia branca que ressurge hoje”. Guterres defendeu que deveriam ser introduzidos nos currículos escolares conteúdos sobre o que foi a escravatura e as “cicatrizes” que deixou, assim como “as histórias de resistência e resiliência” à mesma, como, por exemplo, a da “rainha Ana Nzinga do Ndongo”.

Esta tomada de posição, embora não reconheça explicitamente o racismo estrutural, admite que o racismo tem origem no colonialismo e na escravatura transatlântica, portanto, vai para lá da lengalenga estafada de que o racismo é fruto da ignorância e do medo face ao “diferente” ou que se limita a casos pontuais ou a grupos extremistas. Mesmo que tenha sido apenas um discurso, aquelas declarações contradizem as da ministra Ana Catarina Mendes, que, ainda há pouco tempo, dizia que o “racismo não é um problema estrutural” em Portugal.

O secretário-geral da ONU não afirma, contudo, que parte da desconstrução e reparação do legado da escravatura transatlântica passa, exactamente, pela recusa nos currículos escolares de uma narrativa glorificante da história colonial portuguesa. Recorro aqui ao exemplo do manual de História e Geografia de Portugal, em vigor neste ano lectivo, Era Uma Vez… (5.º no) da Raiz Editora. O manual tem o requinte de, na abertura de cada capítulo, usar o entróito[sic] “Era uma vez…”, seguido de afirmações ‘curtas que, mais do que uma síntese da matéria, são muitas vezes um condensado de glorificação nacional, romantização da violência e despolitização da história colonial.

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