Ora, para alguém que está enterrada até acima do pescoço, ao serviço dos interesses brasileiros, na profissão de demolição da Língua Portuguesa, isto é doentio, é grave, é de facto uma patologia mental. [post “Margarita no sofá“]
E cá está ela novamente, desta vez aproveitando a boleia de uma moçambicana “ligeiramente” anti-portuguesa. Aliás, o tom sinistro de indisfarçável lusofobia perpassa pela verborreia de ambas estas mulheres com uma subtileza equivalente ao bocejo do hipopótamo.
De entre o chorrilho de enormidades, para não variar do seu estilo carroceiro, a “presidenta” do IILP esparrama nesta “local” do DN, por entre inúmeras passagens com a escova da bajulação ao Itamaraty, as suas “ideias” para que (ainda) mais fácil e rapidamente o seu querido Brasil tome conta disto tudo, de uma vez por todas. Parece um ‘cadinho aborrecida, porém, dado o facto — para ela, de todo intolerável — que Moçambique (além de Angola, como sabemos) ainda não tenha “adotado” o Brasileiro como língua oficial.
E que e que e que, blábláblá, Whiskas saquetas. Todo o palavreado do artigo, de cabo a rabo, é absolutamente insuportável. Transcrever esta abjecta porcaria já foi sacrifício suficiente, seja pelas alminhas, não vou agora citar ou destacar pedaços da asquerosa prosa, livra, que nojo.
Ora aqui está um caso flagrante em que se aplica o aforismo sobre a melhor forma de pegar num pedaço de esterco pelo lado limpo. Quem for capaz de tal proeza, pois então faça o favor de ler. Não se aprende nada, evidentemente, mas convém munir-se a gente de pelo menos alguns conselhos sensatos, como o de Sun Tzu (543-495 a.C.): “Keep your friends close and your enemies closer”.
A descolonização da língua portuguesa
Margarita Correia
29 Maio 2023
O discurso de Paulina Chiziane aquando da entrega do Prémio Camões desencadeou notícias e ondas de choque nas redes sociais, provando a importância e o impacto dos temas que abordou, que são daqueles que mexem com as pessoas e carecem de análise e discussão. Não pude ouvir o discurso em directo e não o encontrei na Internet; é no que vou lendo e na minha experiência que baseio a reflexão que aqui trago. Ao falar da necessidade de descolonizar a língua portuguesa, a autora deu exemplos da descrição de conceitos ligados à vivência africana recebiam em dicionários de língua. Ainda que o tópico seja relevante e preocupação constante de fazedores de dicionários e boas editoras, a questão da descolonização da língua não se circunscreve a esta espuma linguística e é bem mais funda.
O Brasil foi a primeira colónia a tornar-se independente, em 1822, em condições muito especiais. O processo de descolonização da língua portuguesa tem decorrido no país, mas não estará completamente concluído, segundo alguns – e.g. a norma escrita culta, especialmente a do mundo das apostilas para exames, parece estar desfasada e ainda muito dependente da norma portuguesa. Pela sua dimensão, o Brasil é hoje uma superpotência em termos de produção e edição (literária, científica, pedagógica, noticiosa, etc.), feita na sua própria variedade nacional, a variedade brasileira do português. O Brasil tem os seus próprios dicionários, gramáticas, pensamento linguístico, a sua terminologia, instituições reguladoras, investimentos na área, as suas política e planificação linguísticas mais ou menos claras. Pode fazer melhor? Pode, sim, mas a verdade é que faz muito, não depende dos demais estados de língua portuguesa e não surpreende a preponderância que tem vindo a ganhar no nosso espaço. A situação de Portugal a este nível pode ser explicada pela pequena dimensão do país, o proverbial atraso educativo que tem vindo a ser debelado nas últimas décadas, mas também pela falta de políticas e planificação linguística adequadas, pelos compromissos com a UE (e.g. a bibliometria) e, lastbutnotleast, pela mania de sermos “geneticamente poliglotas” e “falarmos bem estrangeiro”.
Foram os países africanos de língua portuguesa que tomaram a decisão de a adoptar como língua oficial (de estado, administração, ensino) e também de unidade nacional; lideranças de movimentos de libertação e elites desses países fizeram a sua formação em português, muitas em Portugal; a adopção da língua resultou, assim, em factor de discriminação entre os cidadãos desses países que a domina(va)m e os que não. Em Timor-Leste, a língua portuguesa foi entendida também como factor de identidade nacional; a sua adopção em 2002 deixou de fora os jovens que, à data, haviam sido escolarizados em língua indonésia.
A Sociedade Portuguesa de autores não assume posição pública sobre a questão do Acordo Ortográfico porque entre os seus mais de 26 000 associados há autores que lhe são favoráveis e autores que liminarmente o renegam por o considerarem errado e totalmente desligado da realidade linguística lusófona. No entanto, a SPA considera que este assunto foi erradamente conduzido pelos vários Estados lusófonos, com destaque para o português que não efectuou qualquer consulta às entidades que legitimamente se poderiam ter pronunciado sobre o assunto, designadamente a própria SPA, o Pen Clube e a Associação Portuguesa de Escritores, entre outros. Só por este motivo a SPA sempre se considerou excluída deste debate e de qualquer escrutínio que envolvesse o assunto. Apesar disso, a SPA promoveu em Janeiro de 2013, um acto de consulta aos seus associados, que representam todas as disciplinas criativas que a instituição abarca e obteve o seguinte expressivo resultado: 145 autores manifestaram-se contra o Acordo Ortográfico e 23 a favor. Legitimado por esta votação, o Conselho de Administração da SPA decidiu que o Acordo Ortográfico nunca seria respeitado na regular produção de textos da instituição, que continuou a reger-se pela norma antiga, sem qualquer abertura às novas regras que poderiam decorrer da vigência do Acordo Ortográfico. Agindo desta forma, a SPA respeita e honra a vontade da significativa maioria dos que se pronunciaram. Entretanto a evolução deste assunto na comunidade lusófona veio demonstrar que não existe margem para outra forma de procedimento e que foram os próprios países que têm português como língua oficial que se encarregam de neutralizar o Acordo Ortográfico e de o excluir da nossa realidade linguística e comunicacional, não obstante as formas de obrigatoriedade geradas pelo sector editorial, sobretudo em relação ao livro escolar e infanto-juvenil, que deverão ser respeitadas sempre que os autores as aceitem.
Nos restantes casos, o Acordo Ortográfico é respeitado e levado à prática sempre que a vontade dos autores se manifeste nesse sentido, enquanto se aguarda que o assunto seja definitivamente encerrado ao nível das relações entre Estados, envolvendo necessariamente países como Angola e Brasil, para além de Portugal, devido à sua dimensão demográfica e à sua expressão cultural internacional. Só se deve pôr de acordo aquilo que justifica e legitima esse acordo. A SPA continua, nos seus documentos, a não se reger por um acordo que mostrou ser insustentável.
Os prémios literários têm o valor que se lhe decide dar. Derivam em parte dos regulamentos e objectivos das instituições que os atribuem, estas de pequeno porte (órgãos autárquicos, fundações menores), nacionais ou até globais (o Nobel é caso máximo). E nisso também das composições sociológicas e ideológicas dos júris que os seleccionam. Tudo isso é muito esquecido e o público tende a dar-lhes um valor como se absoluto, um estatuto “objectivo”. Mas os prémios têm outras funções – para além de salvaguardarem os tais objectivos dos seus financiadores – e nisso são positivos: chamam a atenção dos leitores, que depois logo seguem ou não tais recomendações. E remuneram económica, estatutária e, se calhar o mais importante, afectivamente os escritores. Dito isto, valem o que valem…
O Camões também, e por maioria de razão. É um prémio político – instaurado como uma vertente da sedimentação da tal “comunidade de sentimentos” assente na língua, já gizada no Estado Novo do salazarismo de 1960s. Uma das hastes no domínio da “língua e cultura”, nos anos da sua instauração ombreando com esse rumo do republicanismo (maçónico) colonialista que desembocou no Acordo Ortográfico. Mas é também um prémio político dada a sua metodologia, essa consuetudinária alternância anual entre premiado português e brasileiro, de quando em quando polvilhada de um africano. Vertente política – associada à da influência da sociologia das academias – escarrapachada aquando da recusa de jurados da direita brasileira em premiarem Jorge Amado, tendo escolhido outro brasileiro. Coisa restaurada no ano subsequente, já com outros jurados brasileiros aceitando premiar Amado e nisso quebrando-se, afinal pois política oblige, o mandamento político da tal alternância.
Pouco me importa isso: desde que um autor de uma obra única, multifacetada, riquíssima, excêntrica, cosmopolita como Ruy Duarte de Carvalho morreu sem ter ganho o prémio – apesar de autores da reduzida dimensão de Luandino Vieira ou Pepetela terem antes sido premiados – deixei de dar algum crédito ao que os pequenos júris (dois portugueses, dois brasileiros, dois “africanos”) faziam nas suas escolhas. Claro que rejubilei com a atribuição a Raduan Nassar, claro que me ri do meu Portugal geringôncico quando da premiação à “literatura de combate” de Manuel Alegre. Isto porque os tais jurados (já conheci alguns, amigos mesmo) premeiam quem lhes “apetece”. Como referi a questão identitária sempre foi a fundamental – a nacional. Agora introduziram-se outras: o sexo, a raça (a “etnia”, como escreve um conhecido colunista do jornal de referência “Expresso”).
Essa trindade identitária impulsionou o prémio dado a Paulina Chiziane, o qual foi também ancorado por critérios quantitativos – o júri sustentou a sua decisão devido a que a autora é “muito estudada nas universidades”. Entenda-se, Chiziane é muito investigada nas universidades brasileiras pois essas suas características identitárias são apelativas às tensões político-ideológicas vigentes naquele país. Não se trata de discutir o interesse de Chiziane sob um ponto de vista de cânone literário (instrumento que estes “pensamentos abissais” actuais reduzem a qualquer coisa como “epistemicídio”), nem tão pouco de remeter a relevância dos seus textos para uma dimensão documental sobre a sociedade moçambicana. Trata-se de, pura e simplesmente, consagrar as tais identidades: nacional, sexual, racial. Justificando-se o júri de académicos feito, e repito-me, por critérios quantitativos…
Insisto, tudo bem. O “Camões” é o que é, vale o que vale, mero instrumento político. Qual a razão de sufragarmos as atribuições por critérios nacionais e não por outros? E com toda a certeza que não depende do meu gosto pessoal – aliás o meu “gosto” seria lapidado por quaisquer antagonistas, pois reduzido a reflexo imediato (pavloviano até) das minhas vis características identitárias (branco, português, ocidental, homem, heterossexual. E, quem sabe até, reaccionário).
No meu país as pessoas louvam, dadas que são ao fetichismo identitário – que aliás julgam ser sinónimo de posicionamento político. Mesmo que não a tenham lido – ficção e, já agora, os textos “ensaísticos”… Por isso Paulina Chiziane vai agora a Portugal receber o Prémio e faz um discurso a clamar pela “descolonização da língua portuguesa”. E lá está a esquerdalhada a bater palmas – até a minha família literata publica “Obrigado, Paulina Chiziane!”, comovida com a indigência.
A problemática é simples. Essa expressão de Chiziane convoca duas temáticas em voga, que a tal esquerdalhada adora: a necessidade da purificação da língua (o “cancelamento”, por assim dizer), a afirmação de que Portugal é tal e qual um império colonial (“um país racista que não se descolonizou”). Chiziane diz, o pessoal do “Público” e do “Jornal de Letras” comove-se, solidário, e escreve entre aplausos “Obrigado, Paulina Chiziane!”.
Escola primária em Tofo, Moçambique [“link” origem da imagem]Volto um quarto de século atrás, quando até trabalhava na área, mas agora com menos pertinência pois as coisas mudaram um pouco: não é a língua portuguesa que tem de ser expurgada, até porque ela vem tomando rumos diversos consoante os contextos linguísticos nos quais vem sendo usada. O que poderia mudar são as práticas linguísticas portuguesas (e outras). As práticas linguísticas não são a “fala”, são as práticas de quem trabalha na área. Como defendia eu no final de XX quando trabalhava no país de Paulina Chiziane, o que Portugal (esse onde os esquerdalhos agora bramem “obrigado”) deveria fazer como política linguística tinha três dimensões: 1) deixar de andar a passear embaixadas de literatos – escritores bons, medianos, medíocres, académicos e jornalistas culturais sufragados pelo “Jornal de Letras”, ou seja, gente do PS e do PC – e desdobrar-se em apoios à rede de Institutos de Magistério Primário então criados com financiamento do Banco Mundial; 2) apoiar projectos de fixação das línguas nacionais – mesmo que estas práticas sejam violentadoras das diversidades internas a cada continuidade linguística (e sobre isso é sempre de voltar aos magníficos textos de Patrick Harries sobre o Sul de Moçambique) – nisso dinamizando as áreas de estudos linguísticos no nosso país, sempre hiper-deficitários à excepção de alguns trabalhos de missionários ao longo dos séculos; 3) apoiar fortemente as políticas de ensino em línguas nacionais, valorizando o bilinguismo e combatendo o glotocídio. Usando assim o português, seu ensino e sua prática, como língua de civilização – de cultura abrangente, tenho que traduzir o termo para os patetas esquerdalhos.Enfim, um quarto de século depois as situações mudaram, os países africanos serão menos dependentes em recursos humanos e económicos para estas questões. Mas de qualquer forma pensar dentro deste eixo é apelar ao desenvolvimento dos estudos linguísticos, das “práticas linguísticas” no seio dos países de língua portuguesa. Não é andar a surfar a indigente moda “revolucionária” de apontar ao nosso país “escravocrata”, “racista“, “por descolonizar”, a ter de expurgar a sua língua, de “cancelar” termos.Mas a mediocridade não está apenas nos que aplaudem isto. Está também no texto da premiada, atrevido porque infudamentado. A rapaziada da capital pode aplaudir e agradecer mas Chiziane foi a Lisboa mandar “bocas”. Num discurso preguiçoso e sobranceiro, provocatório. Quer ela limpar a língua portuguesa – não a que se fala alhures, mas a que está nos dicionários portugueses. Atira ao ar meia dúzia de palavras, que têm semânticas históricas como é óbvio. Mas basta ir à internet (eu estou longe de casa e dos meus dicionários). Os dicionários actuais não são os de 1923 nem de 1953, as palavras surgem com outros conteúdos (e sim, os melhores dicionários devem ser históricos mas nem todos o terão de ser…). Ou seja, Chiziane ou só tem dicionários velhos ou, pura e simplesmente, foi receber o maior prémio da sua carreira (ela em 1998 dizia a Saramago que queria ganhar o Nobel, mas ainda não o conseguiu) com um discurso que nem sequer fundamentou bibliograficamente, as tais meras “bocas”.Mas há um pormenor final que muito se casa com a “aceitação” do discurso literário de Chiziane, esse apreço de folclorismo alimentado. Entre várias palavras “coloniais” que encontra nos dicionários (portugueses) e que representam a perenidade colonial, a autora clama contra a desvalorização do “matriarcado”, que reclama ser valorizável por ser existente no Norte de Moçambique. Há muito medíocre que invectiva quem fala de “ideologia de género”, dizendo que os que a isso se referem são “reaccionários”, “conservadores” ou quejandos. Mas um dos traços que caracteriza a tal “ideologia de género” é exactamente a recuperação ideológica do mito do “matriarcado”. De facto, o que existe em Moçambique grosso modo a Norte do Zambeze são sociedades com opções matrilineares – relações de parentesco privilegiadas com o lado materno, sucessão de postos e práticas de herança preferenciais por via uterina. E muitas vezes com formas de casamentos tendencialmente matrilocais (os noivos formam a nova casa junto da família da noiva).Dentro de correntes feministas radicais estas opções sociais vêm sendo ditas “matriarcado” (o poder das mulheres), vistas como virtuosas. Uma mistificação recuperando o velho mito das sociedades sobre poder das mulheres (as Amazonas, o recente Astérix entre os Citas, etc.), apresentado de modo algo matizado. Ora Chiziane nem sequer vem alimentada por esse histriónico feminismo académico, pois desde sempre confundiu na sua ficção a matrilinearidade/matrilocalidade com o tal “matriarcado”, um mero caso de ignorância antropológica – algo que muito potencia o apreço que lhe têm as tais “universidades”, de radicalismos identitaristas alimentadas, as quais se tornam, afinal, critério quantitativo de premiação literária. E agora vem-nos dizer “coloniais” ou “colonialistas” porque aprendemos a destrinçar as realidades.E tu, Patrícia, aplaudes isto, agradeces. Para quê?!
[Transcrição integral de artigo, da autoria de José Pimentel Teixeira, publicado no blog “Nenhures” (estan.blogs.sapo.pt) em 08.05.23. Destaques meus. Acrescentei imagens e “links”, sendo os extractos apensos de minha autoria.]
Se o mais provável; à medida que envelhecemos, é vermos aumentar o desajuste entre nós e mundo — escrevo provável, não inevitável — existem acontecimentos ou factos ou realidades que nos ilibam da acusação de “velhos do Restelo”, essa figura camoniana de um pessimismo “só de experiência feito”, talvez injustamente desamada.
Relembremos Billy Wilder, o homem que ao realizar Some Like it Hot (Quanto Mais Quente Melhor, 1959) ou Avanti (Amor à Italiana, 1972) terá feito mais pela liberalização dos costumes do que os três longos dias de pândega em Woodstock.
Apesar disso, diria ele, cumpridos os seus setenta anos: “They say Wilder is out of touch with his times. Frankly, | regard it as a compliment. Who the hell wants to be in touch with these times?”
Mais perto de nós, infelizmente também morto, Leonard Cohen, embora sem se congratular por ter estado alguma vez em dessintonia com os tempos, nem por isso deixaria de cascar no movimento hippie seu contemporâneo, numa entrevista que deu ao crítico João Lisboa corria o ano de 1994: “Depois apareceram os hippies que não me interessaram, sobretudo quando começaram a poluir os rios e a deixar lixo por todo o lado, quando iam para o campo adorar Deus e a Natureza, Eram péssimos campistas. Eu fui escuteiro, logo, posso dizê-lo”.
É da circunstância de serem invariavelmente verberadores que se extrai a comicidade dos velhos Marretas, mas The Muppets show vivia precisamente do exagero, do burlesco e do humor. Na vida real, os críticos arraigados e avançados na idade não costumam ter graça nenhuma. Dito isto, por seu turno, os bajuladores de toda e qualquer novidade avançados na idade são muitas vezes patéticos. Quando não danosos.
Veja-se o caso do argumento muito em voga na época — e usado por gente com mais do que idade para ter juízo — que insistiu em casar à contestação ao Acordo Ortográfico de 1990 da Língua Portuguesa com uma posição geracional. Jovens pelo sim. Velhos pelo não. Viu-se.
Os seus maiores promotores e defensores, já na altura somando décadas consideráveis, João Malaca Casteleiro, por Portugal, e Antônio Houaiss, pelo Brasil, foram, entretanto, fazer companhia a Billy Wilder e Leonard Cohen, o primeiro em 2020 com 83 primaveras, o segundo em 1999 com idade idêntica.E mesmo descontando o tempo decorrido entre a aprovação do AO pelos deputados da República e a morte dos dois linguistas, mostra-se difícil imaginá-los em 1999 a hastear o texto do Acordo com o mesmo sorriso largo com que o então jovem Daniel Cohn-Bendit encarou a cova dos leões em Maio de 68.
Escusado será dizer que jovens e velhos podem ser igualmente irritantes. Sobre o assunto, nada como ler Diário da Guerra aos Porcos do argentino Adolfo Bioy Casares (Cavalo de Ferro, 22 edição, 2015). E que me perdoem se por acaso repito a recomendação: é assacá-la à idade.
Por falar em Argentina e em Adolfo Bioy Casares, leio que quem morreu foi Maria Kodama, mulher e herdeira de Jorge Luis Borges (grande amigo de Casares), cujos traços asiáticos eram menos acentuados dos que os de Yoko Ono — o que é natural, dado que ambos, mãe e pai de Yoko eram japoneses, enquanto Kodama nasceu de pai alemão e mãe natural de Tóquio imigrada para Buenos Aires. Foi ao ler a notícia da sua morte que me lembrei de um apaixonado espanhol coleccionista de Borges que há muitos, muitos anos — ainda existia a Livraria Castil de Alvalade em Lisboa e o livreiro Miguel Bastos não se tinha apagado para sempre numa malfadada estrada a caminho de Coruche –, após comprar todas as traduções em português do autor de O Jardim dos Caminhos que se Bifurcam, ficou por ali, indiferente ao pó dos livros e ao meu horário de saída, queixando-se de Kodama com uma veemência que Maomé não pôs na condenação do toucinho, nem os fãs dos Beatles nas críticas a Yoko Ono ou outros descerebrados a Salinger.
Todo este intróito, que vai longo e saiu particularmente enlutado, serve, claro, para me antecipar às acusações de catastrofista.
Como leitora voraz que sempre fui, os livros de EnidBlyton não me passaram ao lado. Devorei os mistérios e aventuras dos Cinco e com eles percorri a sua ilha favorita, andei no colégio de Santa Clara, em Londres, com as gémeas O’Sullivan, frequentei o colégio das Quatro Torres, na Cornualha, acompanhei um clube de pequenos detectives, os Sete, detendo senhas para as suas reuniões secretas, trepei intrepidamente a Árvore Longínqua e ajudei diligentemente a resolver vários mistérios que tendiam a despontar em Peterswood, no condado de Buckinghamshire.
Infelizmente o lobby anti-Blyton não partilha do meu entusiasmo e tem atacado ferozmente a sua obra, apelidando-a de snob, misógina e racista. No seio deste movimento os livros de Blyton foram banidos de numerosas bibliotecas e novas edições têm emergido, uma vez revistas e reeditadas, com nomes, personagens e enredos adulterados com vista a — pasme-se — convertê-las em obras politicamente correctas, isto é, cumpridoras de imperativos «woke». A título de exemplo, a revisão das obras tem abarcado a eliminação de nomes considerados ofensivos, o respeito pela neutralidade de género, a divisão de tarefas domésticas, o cumprimento dos horários escolares e a resolução de mistérios e acção e aventura sob supervisão de um adulto.
Esquecem que os maravilhosos livros de Blyton encerravam aventura, mistério e magia, fornecendo simultaneamente (pormenor que tende a ser afastado) lições, ensinamentos e pedagogia. Os personagens eram recompensados por actos de generosidade, bondade, honestidade, humildade e outras virtudes e punidos quando mentiam, roubavam, tinham acessos de raiva, eram mal-educados, gananciosos, egoístas ou cruéis.
Ignoram que sob um estilo de escrita despretensioso Blyton gerou enredos repletos de complexidade, explorando, por exemplo, as questões de raiz que levavam os adolescentes a incorrer em comportamentos socialmente inaceitáveis. Olvidam que as referências a poder monetário eram raras e que o sucesso dos protagonistas de Blyton advinha da sua habilidade intelectual, da sua capacidade de trabalho, do seu bom carácter e de uma pitada de magia. Desconsideram que Blyton criou personagens femininas cheias de garra, como DarrellRivers ou as gémeas O’Sullivan e que as suas personagens mais célebres e memoráveis são raparigas (e não rapazes) obstinadas, ousadas e rebeldes.
Talvez o politicamente correcto deva adquirir perspectiva. A obra de EnidBlyton é um produto de seu tempo e do seu espaço e há que a reconhecer como tal. O mesmo sucede, por exemplo, com os livros de Joseph Conrad, de AldousHuxley e de Agatha Christie. Se as personagens de Blyton são demasiadamente abastadas que destino devem ter os mordomos e as empregadas que surgem aos pontapés na obra de Agatha Christie? Se as histórias de Blyton têm laivos de racismo como devemos encarar a obra de Shakespeare, designadamente a referência ao mouro que habita Otelo e ao judeu que tem lugar proeminente no Mercador de Veneza?
As alterações em causa retiram à obra a verdade da época e do espaço em que foi escrita, vedando a constatação e a avaliação da evolução histórica, sociológica e literária. O panorama literário é assim empobrecido, podendo o leitor chegar a um ponto em que apenas tem acesso a literatura contemporânea (politicamente correcta, claro está), sendo as restantes obras literárias banidas e/ou censuradas em nome (reparem no paradoxo) de valores liberais — e convertendo-se os livros de outrora em artigos de colecção.
Impõe-se ainda referir que as revisões acima referidas não são lícitas, em muitos países, graças a algo que o Direito de Autor qualifica como os direitos morais do autor. Tais direitos decorrem do reconhecimento da natureza eminentemente pessoal da criação do espírito e do vínculo, imperecível, entre criador e obra.
O nascimento dos direitos morais remonta ao século XIX, salientando-se, em 1814, o facto de um Tribunal francês ter reconhecido que certo autor tinha direito a que o seu manuscrito não fosse alterado, sem a sua autorização, pela editora à qual havia sido submetido (Billecocq v. Glendaz, Tri. civ. Seine, 17/08/1814). Em 1928, os direitos morais foram incorporados na grande Convenção de Berna para a Protecção das Obras Literárias e Artísticas, com reflexos na lei portuguesa que declara, sem hesitação, que o autor goza do direito de assegurar a genuinidade e integridade da sua obra — direito esse inalienável, irrenunciável e imprescritível, cuja guarda passa, após a sua morte, para os seus sucessores.
Consequentemente, embora o estudo da obra de Blyton, incluindo no que toca a preconceitos e estereótipos seja bem-vindo sob uma perspectiva académica, alterar a obra traduz-se em mutilação e deformação da mesma, desvirtuando-a e podendo afectar a honra e reputação do seu autor e consistindo, pois, em acto ilícito em muitos pontos do globo.
Em suma, retirar a obra do contexto em que foi redigida e actualizá-la de acordo com uma das linhas vigentes de pensamento é mais uma tentativa de mudar a História, sendo pelos motivos acima apontados fruto de ignorância e de esquecimento e empobrecendo deste modo o quadro cultural mundial.
PatriciaAkester
Fundadora de GPI/IPO, Gabinete de Jurisconsultoria e
Associate de CIPIL, Universityof Cambridge