A.I. (artificial intelligence) ou E.I. (estupidez artificial)

Já aqui foi referida, aliás por diversas vezes, uma das facetas (mais) visíveis da operação de limpeza étnico-linguístico-cultural em curso: a começar pela substituição do código de página da Língua Portuguesa (CHCP 860) pelo do crioulo brasileiro (CHCP 850), todas as plataformas e serviços da Internet, assim como os sistemas operativos de computadores e redes, incluindo as telecomunicações pessoais (telemóvel, e-mail, chat) e ainda os programas de computador mais comummente utilizados (Windows, Word etc.), tudo passou a estar em língua brasileira.

Não interessa agora que uma parte dos portugueses se alheie da questão, que não queira saber o que se passou, o que se está a passar e o que isso implica. Há quem finja não ver o que tem diante dos olhos, assim como quem se entretenha a arranjar explicações para o inexplicável; há os parolos, fatalistas e bajuladores armados em pragmáticos (“eles são 230 milhões e nós só 10 milhões“), há os “espertalhões” armados em pacifistas (“não queremos guerras com o Brasil“) e há também os “puristas”, aquela misteriosa espécie de zombies que embirram solenemente com anglicismos, francesismos, espanholismos ou estrangeirismos em geral, mas que pouco ou nada se ralam (alguns até apreciam esse tipo de escatologia linguística) por terem “virado” qualquer coisa de nada recomendável (e até “adotaram” um “xodó”, ou o “escambau”, qui légau).

Há por aí de tudo, em suma, do mais nojento ao mais intolerável, mas felizmente há também quem não se deixe abater pela propaganda sistemática, ignorando a campanha de desinformação dos media avençados e dos mercenários contratados.

Dessa resistência é exemplo este leitor do “Público” que, em “Cartas ao Director”, refere o ChatGPT — a mais recente invenção no vastíssimo campo da estupidez artificial — como sendo mais uma demonstração prática das manobras que visam a substituição da Língua Portuguesa pela brasileira… e daí a liquidação da Cultura, do património, da identidade nacional. Embora já contaminado — pelo menos, aparentemente — pelo “purismo” (ou puritanismo) anti-estrangeirismos, este leitor revela a sua preocupação com o que se passa naquela máquina de encher chouriços mentais.

Máquina esta cuja disfunção está ilustrada no “diálogo” mais abaixo, em que à minha afirmação, «Português só há um», o imbecil real que programou a besta virtual responde com propaganda acordista, desinformação brasileirista, intoxicação política.

O ChatGPT e o futuro do Português

São muitas as preocupações relativas à popularização de uma nova ferramenta da inteligência artificial: o ChatGPT. Como o nome indicia, desde logo, trata‑se de um programa interactivo, cujas virtudes residem na capacidade progressiva de responder às perguntas dos cibernautas num registo multímodo (da resolução de dúvidas pontuais, por exemplo, à produção integral de artigos científicos). Entre essas preocupações, por conseguinte, destacam‑se as de natureza académica e política.

Mas não devem ser apenas a pirataria intelectual e a propaganda da desinformação os motivos maiores do nosso desassossego. No que diz directamente respeito a Portugal, o uso intensivo dos “autómatos de conversação” há‑de erodir irreversivelmente o génio da língua portuguesa — por força de um duplo constrangimento, a saber: a actual predominância do “portinglês” e ainda a pressão crescente (acentuada pelo novo acordo ortográfico) do Português do Brasil. Entre Cila e Caríbdis, perguntar‑se‑á, haverá futuro para o idioma de Camões?

Eurico de Carvalho, Vila do Conde

[“Cartas ao Director”, jornal “Público” de 14.02.23. “Links” e destaques meus.]

resposta do sistema de estupidez artificial ChatGPT

Essa afirmação não é correta. Embora a língua portuguesa tenha se originado em Portugal e tenha sido desenvolvida ao longo dos séculos pelos povos que falam essa língua em todo o mundo, é importante reconhecer que existem várias variações regionais e nacionais do português.

Por exemplo, no Brasil, a variante do português falada é diferente daquela falada em Portugal, com diferenças no vocabulário, pronúncia e até mesmo na gramática. Além disso, os países africanos de língua portuguesa (Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, São Tomé e Príncipe) também têm suas próprias variantes do português, que foram influenciadas pelas línguas locais e pelas culturas desses países.

Em resumo, embora o português tenha uma raiz comum em Portugal, a língua evoluiu de maneiras diferentes em diferentes partes do mundo, dando origem a uma variedade de variantes regionais e nacionais do português.

«Um contínuo elogio da loucura» [Maria do Carmo Vieira, 11.02.23]

Ortografia e “linguagem inclusiva”: um contínuo elogio da loucura

Senhor Presidente, certamente que verá e ouvirá os inúmeros erros decorrentes do uso do AO 90 e por isso lamento que silencie essa situação.

Maria do Carmo Vieira
“Público”, 11 de Fevereiro de 2023

No seu filme O Destino (1997), Youssef Chahine (1926-2008), realizador egípcio, mostra-nos, a dada altura, o filósofo do Al-Andaluz, Averróis, em discussão com o filho mais novo do Califa, Al-Mansur, recém-fanatizado em dogmas forjados e fundamentalistas (numa associação às seitas jihadistas). Transcrevo as suas palavras, bem elucidativas da leveza com que se encara o estudo e da arrogância com que se impõe uma pseudo-sabedoria: És tão vazio que repetes todos os disparates de que te enchem. Um poema e dois versos corânicos e julgas-te poeta e sábio? Que sabes de medicina e de astronomia, de matemática e de química e de filosofia? Sabes o suficiente do amor, da verdade, da justiça para afirmar-te capaz de espalhar a palavra de Deus? Responde!”

Certamente que a sua leitura nos remeterá simbolicamente para inúmeras situações que já presenciámos, desconhecendo contornos, ou vivenciámos directamente, conhecendo-as por dentro, resumindo-se a questão grosso modo à facilidade com que aprendizes de feiticeiro (ou popularmente “chicos-espertos”) se arrogam o direito de impor, e serei benévola no substantivo, o erro e divulgá-lo religiosamente como dogma, em nome de qualquer coisa que é sempre perspectivada como um bem. Uma atitude que não me coibirei de descrever como execrável. E não abdico do termo porquanto a acção das brilhantes mentes, habitualmente matizada pelo cinismo de um sorriso benevolente, nos impõe a ignorância, conseguindo, quantas vezes, apagar valores que considerávamos profundamente gravados em nós.

A pressão que se abate sobre quem tenta reagir é tão feroz que o facto de ter usado acima o termo, gramaticalmente correcto, de “substantivo”, poderá ser ajuizado, pelos criadores da TLEBS, que à revelia o transformaram em “nome”, como um acto de “resistência à mudança”, expressão acusatória para quem põe em causa “a nova ordem”. E até o facto natural de referir por Escola Primária o agora designado 1.º ciclo pode ser, para os fundamentalistas da “nova escola”, objecto de censura por ainda estarmos imbuídos, imagine-se, de um “saudosismo salazarista”.

E neste contínuo elogio da loucura que transparece nos actos e nas palavras de quem quer impor-se, arrastando os outros nas suas tortuosas experiências, vamos assistindo a uma miríade de situações que parecem não ter fim e que, ao invés de serem travadas ou avaliadas criticamente por quem de direito, recebem o apoio, de forma velada ou não, de quem abdicou de ser um advogado à altura. A este propósito penso no Presidente da República e no seu papel quer em relação ao Acordo Ortográfico de 1990 (AO90) quer à dita “linguagem inclusiva”.

Comecemos pelo AO90, cujo processo inicial se deveu à vontade de um político, o presidente do Brasil, José Sarney, que, movido sabe-se lá por que razões, se lembrou de promover, em 1986, um encontro, no Rio de Janeiro, com todos os países de língua oficial portuguesa, e cujo texto resultante deste encontro – Acordo Ortográfico de 1986 – foi fortemente contestado pelos linguistas e nunca aprovado por eles nem pela sociedade civil.

É por demais conhecido o que se passou depois da paciente espera para uma melhor oportunidade de concretização, que surgiria em 1990, sendo a novidade justificada numa inimaginável e acientífica “Nota Explicativa ao Acordo Ortográfico de 1990”. Bastar-nos-á recordar o pretenso objectivo para este AO: a irrealizável “unidade ortográfica”, na diversidade das lusofonias. Amplamente divulgadas foram também as negociatas que adulteraram o conteúdo do Tratado Internacional, originando protocolos modificativos e ratificações que até agora não se fizeram. A discussão a seu tempo feita na Assembleia da República é também um exemplo flagrante de um elogio à loucura, ajustando-se igualmente ao teor das palavras de Averróis. Na verdade, a ignorância elevou-se e nem faltou a galhofa, entre os deputados presentes, até à insultuosa votação final. As actas podem ser consultadas.

Feita esta breve introdução, lembremos como o Presidente da República, no seu primeiro mandato, se mostrou interessado pelo tema do acordo ortográfico, polémica que ainda se mantém, parecendo, nessa altura, não tencionar abandonar essa preocupação. Nas palavras de Pedro Mexia, um dos seus assessores culturais, “havia a expectativa” de que o Presidente reabrisse o debate sobre a matéria, o que aliás lhe fora sugerido também pelo prestigiado Professor Artur Anselmo, então presidente da Academia das Ciências.

Anos mais tarde, o acordo, fruto de um qualquer truque de ilusionismo amador, tornou-se “um não-problema”. Em suma: a língua portuguesa deixou de ser um património cultural a defender, estando sujeita a jogadas políticas, e o seu ensino deteriorou-se no convívio com o caos determinado pela implementação do famigerado acordo, um caos que não só se verifica na ortografia, como também na pronúncia de “novas palavras” e nos equívocos que gera (retractar, agora sem “c” é disso um exemplo, entre tantos outros).

Lembrar-se-ão também da Associação de Professores de Português (APP) que solicitou recentemente ao ministro da Educação que os alunos brasileiros não fossem penalizados nos exames, devido às diferenças linguísticas que colidem com a norma portuguesa. Por estranho que pareça, não rebateram a absurda “unidade ortográfica” que justificou o AO e que a APP sempre apoiou. Afinal, a situação exposta pôs a nu o inegável: a impossibilidade de uma unidade ortográfica.

Senhor Presidente, certamente que verá e ouvirá os inúmeros erros decorrentes do uso do AO 90 e por isso lamento que silencie essa situação, que julgo não se adequar a um professor e a um Presidente que afiançou “ser de todos os Portugueses”. Lamento igualmente que os seus assessores culturais, alguns deles críticos do acordo, e amantes da palavra, não lhe tenham sugerido a imperiosa necessidade de um debate académico e científico sobre a matéria quando é por demais evidente a permanência da polémica, existindo livros que a analisaram em pormenor, nomeadamente os do professor A. E.[1], linguista da Universidade Nova. Os exemplos de erros são incontáveis e a sua ininterrupta proliferação vilipendia a Língua Portuguesa, mal falada e mal escrita, com a agravante de nem mesmo o que ficou registado no texto da Nota Explicativa se cumprir.

São inúmeros os professores que respondem a dúvidas dos alunos sobre o modo correcto de escrever algumas palavras, tal a confusão que reina. Um colega meu de Tomar, João Barroca, tem ao seu dispor centenas, senão milhares, de exemplos das confusões ortográficas no quotidiano e na comunicação social. Situação idêntica em instituições escolares, camarárias e outras (elevado número de Editoras, entre as quais a Fundação Francisco Manuel dos Santos, plataformas de streaming…) que deviam prezar pela correcção e a esquecem.

Lamenta-se igualmente a resignação de alguns intelectuais que traem, com o seu silêncio, a causa em que publicamente se movimentaram e empenharam, apresentando inclusive propostas, como aconteceu com o Professor António Feijó, da Faculdade de Letras de Lisboa, em relação a um referendo, sugestão com a qual não concordei, na altura, mas para a qual trabalhei arduamente, e em vão, com grande número de voluntários.

Não posso deixar de transcrever também as razões que assistiam ao então director e presidente do Conselho Científico da Faculdade de Letras (2013), agora presidente da administração da Fundação Gulbenkian, quando escreveu ao presidente da Comissão de Educação, Ciência e Cultura, José Ribeiro e Castro, a propósito do AO: “[…] Arrogar-se o Estado legislar sobre intangíveis como a língua, que na realidade o excedem, seria uma extensão abusiva das suas funções. Numa altura em que, em Portugal, se procura definir com parcimónia quais as funções do Estado, a sua extensão a um domínio como a língua é uma forma de cesarismo indesejável. É este o meu primeiro argumento contra o Acordo. […] Finalmente, alterar o modo como escrevo para o modo como o Acordo impõe que escreva é uma forma de violência sobre o que de mais visceral pode ser a identidade pessoal. É nesta visceral violação subjectiva, que é a de todos os que, escrevendo de um modo, se vêem coagidos a mudá-lo, que reside o meu segundo, e último, argumento contra o Acordo. Se se entender que esta posição não é ‘prática’, considere-se a desoladora pobreza conceptual deste termo no debate público, que ignora versões nocionalmente mais ricas e densas do que é ‘prático’. Eminentemente ‘práticas’ são noções como a de ‘direitos individuais’, a de ‘personalidade’, de ‘solidariedade’, ou de um valor demasiado rarefeito na história moderna e contemporânea de Portugal, à sombra do qual termino, a ‘liberdade’.”

Também na Gulbenkian, encontramos estranhas convivências determinadas pelo AO: “Egito”, “egípcios” e “egiptólogos”, a propósito de Faraós superstars – designação tão em moda, a fazer lembrar Oeiras Valley!

Os erros mais crassos, e que não têm fim à vista, dizem sobretudo respeito a vocábulos cujos “c” e “p” continuam a ser ceifados a torto e a direito, mesmo quando lidos. “Contato” e “Fato” atingem o top, sendo o jornal Expresso o campeão, mas não falta também o “inteletual”, o “abruto”, a “convição”, a “batéria” e tantos outros que o Senhor Presidente certamente encontrará no seu dia-a-dia. Não o preocupa esta situação? Não o preocupam os alunos que diariamente são confrontados com erros? Não o preocupa que os professores, na sua maioria contrários ao acordo, sejam forçados a cumpri-lo sob pena de lhes ser instaurado um processo disciplinar?

Reparei igualmente que o Senhor Presidente parece ser sensível à linguagem inclusiva”, uma linguagem criada por quem faz tábua rasa da Gramática e da lógica da língua, pretendendo impor a sua verdade, tal dogma indiscutível. Devo confessar-lhe que a sua preocupação, recente no tempo, de se dirigir aos portugueses, referindo “Portugueses e Portuguesas” me causou estupefacção e creia que não me senti mais respeitada por isso.

Saberá que há quem acerrimamente defenda que a par de “camaradas”, se diga também “camarados” e certamente “camarades”, justificando-se a sequência com a dita inclusão. Assim sendo, surgiriam “crianças, crianços e criances” ou “colegas, colegos e colegues” e os exemplos seriam infinitos e a escrita um acto de demência, concordará. E o que fazer ainda no caso de “estudante”, de “presidente” ou de “personagem” ou como resolver o problema dos artigos definidos e indefinidos que se cingem a masculino e feminino? É o tipo de raciocínio chão, da leviandade que caracteriza toda a ignorância, da feroz mania de avaliar, de dissecar, de expor ostensivamente, de inovar por inovar.

Sem dúvida que a atitude miserabilista que tomou conta destas mentes alastrou a situações afins, determinando o clímax acontecido recentemente no Teatro de S. Luís. Uma insanidade, muito aplaudida, apesar de pôr em causa o Teatro, o acto de representar e a saída de cena. Um flagrante elogio da loucura, não concorda, Senhor Presidente?

Quero ainda acreditar que o AO tornará a ser um problema, na sua perspectiva, como aconteceu há uns anos, porque é intolerável o actual desrespeito pela Língua Portuguesa e pela sua ortografia. E porque ficou por satisfazer o pedido do Professor Artur Anselmo, cujo estudo aturado merece o respeito e a admiração de todos nós, porque não agora?

Por último, desejo felicitá-lo pelo seu abraço ao imigrante nepalês, cobardemente espancado, em Olhão, por quem segue os ditames da seita já conhecida. Também aqui será de acompanhar a situação do imigrante nepalês, que, no fundo, representa todos os que procuram trabalho em Portugal (e quanto lhes devemos!…) já que se multiplicam de norte a sul os lobos com pele de cordeiro. O seu abraço, senhor Presidente, não pode ser em vão. Tem de significar alguma coisa no futuro deste nepalês.

[Transcrição integral de artigo, da autoria de Maria do Carmo Vieira,
publicado no jornal “Público” de 11 de Fevereiro de 2023. “Links” (a cor verde) e destaques meus.]
[1] Nome reduzido a iniciais a pedido do próprio.

[O diálogo mencionado no início do texto transcrito está neste extracto (dobrado em Francês), a partir dos 3m:45s.]

No comment (em tuguês, xarepe)

Variando um pouco, em vez de notícias, conteúdos ou artigos sobre o #AO90, a matéria que hoje aqui reproduzo é uma selecção de comentários a um post sobre a Língua… inglesa. Esta excepção à regra justifica-se não apenas porque os textos do jornalista Pedro Correia, pelo menos aqueles que publica no blogDelito de Opinião“, costumam suscitar alguma febre comentadeira, mas também porque, ou principalmente porque, no caso deste post em concreto, o tema remete para algo que já aqui foi escalpelizado (e devidamente esfolado, espero) por diversas vezes: o purismo linguístico.

Ou seja, aquilo a que o blogger Pedro Correia se refere, aliás fazendo eco de uma corrente de “opinião” cada vez mais grossa — literalmente — e cada vez mais incompreensível, dado ser fundamentalista nos argumentos — basicamente –, é o dever patriótico de verter para Português os estrangeirismos “em geral” e, de entre estes, com particular vigor (ou sanha), os anglicismos.

Trocando em miúdos a provavelmente excessiva adjectivação, trata-se da aborrecidíssima premissa que postula (é favor não confundir, se bem que o tema se preste a inúmeros equívocos, a forma verbal “postula” com  o substantivo “pústula”)  — liquidar aquelas mais do que malévolas expressões idiomáticas inventadas pelo Mafarrico yankee, tais como “hardware” e “software” e “upload” e “download” e assim (não, “assim” não é um dos pecados cámones),  trocando-as pelos respectivos “equivalentes” em Português. Alguns desses puristas diriam “destrocando-as” ou até, quem sabe, “destrocando-zi-as”, mas, faz de conta, ‘isso agora não interessa nada’.

Como também não interessa, pelos vistos[1], que não seja o Inglês, que se impõe naturalmente, porque é a língua franca da actualidade, mas sim o brasileiro, um crioulo de origem portuguesa que se afastou irremediavelmente da sua matriz, a língua que alguns brasileiros “adotivos” tentam impor violentamente a todos os portugueses.

Os “puristas” ralam-se imenso com estrangeirismos, mas pouco ou nada com “usuários” a “subir” e a “baixar”; adoram levar com “futchibóu em gérau” mas ficam furibundos até com sinais de trânsito (o sinal de “stop” deve passar a “párá” em brasileiro, “ô cara”?).

Não confundamos, não pelo menos assim tanto, à portuguesa, alhos com bugalhos: uma coisa é o exagero e o que isso comporta de absurdo (ou de risível), e outra coisa bem diferente, radicalmente diferente, é a eficácia na comunicação, a utilidade — caso a tenha, de facto — do termo ou da expressão original, quantas vezes intraduzível, quantas vezes insubstituível, ou na língua franca ou em qualquer outra; um idiota a armar aos cucos, tentando impressionar (ó patego, olh’ó balão) quem imagina que irá ficar tanto mais impressionado quanto mais ele usar bacoradas em “estrangeiro”, não tem nada a ver com a naturalidade no discurso,  com a fluidez e até com o encadeamento de ideias e o rigor da argumentação que anglicismos (ou francesismos, ou espanholismos ou umbundismos ou quimbundismos) podem facultar, se utilizados com alguma parcimónia e um módico de sensatez.

É o que se passa, aliás, nos diversos níveis da linguagem. Da gíria ao calão, passando pelas linguagens técnicas (informática, médica, farmacêutica, arquitectónica, gráfica) ou artísticas (poética, literária, pictórica, musical), existe todo um universo de planetas linguísticos, cada um deles com sua atmosfera e seus relevos, suas matas e seus desertos, seus mares e continentes, até com o próprio  Sol e satélites únicos…

O pretensiosismo de alguns cretinos merece, quando muito, se não algumas gargalhadas, a mais soturna indiferença. Confundir o que dizem uns tipos armados em carapaus de corrida com a Língua Portuguesa (ou a inglesa, ou a francesa, ou a servo-croata) é não apenas (igualmente) pretensioso, como não comporta qualquer tipo de mérito ou, de resto, seja o que for de válido — muito menos de um ponto de vista meramente linguístico.

Aliás, esta espécie de militância desviante (e enviesada) pelo purismo fanático acaba por ser contraproducente: enquanto alguns se entretêm com suas divagações algo onanistas, retiram enfoque àquilo que verdadeira e exclusivamente está em causa. Desviam as atenções, desmobilizam vontades, inutilizam trabalho, diminuem, reduzem e amesquinham — a troco de nada — a luta contra o único (e real) estrangeirismo que merece combate: o extermínio da Língua Portuguesa pela imposição de uma língua alienígena.

Comentários

Em Portugal dever-se-ia falar português, pelo menos nas nossa instituições. Esta senhora está há tanto tempo em Portugal a ser paga principescamente, deveria ter aulas para falar português e não francês, inglês ou outra língua.
A língua portuguesa é uma das línguas oficiais da UE, e é a mais falada, ou uma das mais faladas no mundo, no continente europeu, americano e africano. [Maria Teresa – ]

Estivesse a senhora em Madrid e ao fim do primeiro mês já “hablava” castelhano. Nós, por cá, somos assim.
Se valorizamos tão pouco a nossa língua e dobramos a cerviz a qualquer estrangeiro, como havemos de exigir que a administradora da “empresa aérea de bandeira” portuguesa fale… português? [Pedro Correia –  ]

Concordo. Mas eu passo-me com os estrangeirismos ( digo) palavras inglesas que se lêem e são usados na linguagem verbal, quando temos um vocabulário riquíssimo e que devia ser usado.  [Maria Araújo – ]

A última moda (já com uns bons anitos) na empresa onde trabalho é recebermos correspondência em inglês de escritórios brasileiros. E, pior ainda, respondemos-lhes também em inglês. Há uns anos, a administração ainda se ralava vagamente com isso, e havia indicação para se responder em português (tal como para os nossos vizinhos espanhóis que nos escreviam em castelhano). Hoje em dia já não ligam, e segue tudo em inglês. É o cúmulo do deixa andar. Em contrapartida, para certos clientes franceses que nos escrevem em inglês, respondemos em francês. Não tenho nada contra, mas a falta de coerência é gritante.
E sim, a hegemonia do inglês americano é geral e irreversível. Infelizmente, o que ajuda à comunicação por um lado, prejudica na aprendizagem e no uso das línguas nacionais pelo outro. Não sou purista, mas esta falta de amor pela língua-mãe (que se nota e agrava cada vez mais, e não só em Portugal, como é óbvio) é triste. No mínimo. [Ana CB – link]

Nem fazia ideia disso, Ana. Brasileiros e portugueses a comunicarem em… “amaricano”.
Mas já quase nada me surpreende. [Pedro Correia –  ]

Nem o Pedro calcula a quantidade de brasileiros que nos perguntam ” Fala portugueis?”. Apetece dar uma resposta torta do género ” Eu falo, mas você não.”  [Maria Dulce Fernandes–  ]
O declínio das outras línguas preocupa-me pouco ou nada, já o declínio da nossa língua (escrita e falada) é gritante. A maior pérola que “apanhei” foi ter enviado um contrato para o Brasil escrito na nossa língua de Camões e para o mesmo ser aceite lá, teve que ser traduzido com certificação, de Português para Português?!! Tudo isto após acordo ortográfico!  [Anónimo – ]
Isso não me espanta. Afinal o “acordo ortográfico” não é Português…!  [Zé Nabo – link]

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Língua vazia

Population (2020): 12,400,232 | Metro: 22,001,281 (Greater São Paulo) [Wikipedia]

«A única solução para o infeliz acordo seria rasgá-lo. Mas ‘repensar’ também serve, desde que isso sirva para cobrir de vergonha a parolada nativa que abraçou o acordo sem parar para pensar.» [João Pereira Coutinho, 28.01.17]

«Como foi possível levar a sério o acordo ortográfico?»
«O problema do acordo é termos tido vários governos que, reverentes e analfabetos, foram ratificando, modificando e legislando como se o acordo fosse mesmo para levar a sério.»
[João Pereira Coutinho, 08.05.16]

Mau, mau, mau. A julgar pelo palavreado desconexo que alardeia neste seu artigo, o mais recente dos que foi escrevendo sobre o AO90, parece-me legítimo formular a seguinte singela pergunta: o que terá acontecido para que João Pereira Coutinho tenha subitamente desatado a confundir o AO90 com os “linguistas” de serviço que o fizeram? Ter-lhe-á dado, a JPC, assim de repente, quando por acaso estava (ou está) no Brasil em serviço, alguma camoeca? Mas afinal o que diabo tem o AO90 a ver com as calças?

Se, de facto, foi um lapso momentâneo, um simples hiato ou decerto acidental pancada fortuita com a testa em alguma portada baixinha, bom, vejamos, então já é outro falar e nesse caso talvez valha a pena relembrar a propósito o bê-á-bá.

Por uma questão de higiene mental e para que resulte claro da leitura que de facto JPC não terá dado uma inoportuna cabeçada, acrescentei na transcrição emendas entre parêntesis rectos ([…]), nos casos em que me pareceu que o texto original foi adaptado pelo editor brasileiro do jornal brasileiro para brasileiro (conseguir) ler a prosa redigida no Português vernáculo*** do original. Como sabemos, os brasileiros que sabem ler têm uma relação extremamente conflituosa com as línguas estrangeiras, a começar pela portuguesa, e por isso mesmo não apenas traduzem todo e qualquer texto em Português como vão ao ponto de legendar em brasileiro, nos canais de TV, tudo o que um tuga diz na estranhíssima língua cuja designação, “língua portuguesa” (ou “português”), foi segundo eles roubada aos brasileiros, os únicos detentores da patente da “língua univerrssau“.

Enfim, adiante, vamos ao artigo propriamente dito. A ver se tiramos a limpo o que afinal se terá passado na ligeiramente vertiginosa carola do escriba para que tenha debitado tamanha concentração de “distracções” e tal sortido de “variações”.

O pressuposto inicial em que o escriba se estriba, executando um estranhíssimo número de malabarismo argumentativo — aliás, um pouco trapalhão — sem qualquer mérito ou a merecer o menor crédito, é inventar de raiz uma estranha e indistinta figura genérica de malvados aos quais chama, em tom de insulto e chacota, “os puristas da língua”. Não se refere com certeza aos que rasgam as vestes por causa de estrangeirismos, barbarismos, francesismos e, principalmente, anglicismos. Não. Com esses não se chateará JPC porque esses mesmos não chatearão JPC; é-lhe indiferente, e bem, que tais fanáticos domésticos não parem nos sinais de STOP (“to stop” é um verbo em Inglês, que horror), que não apreciem nem “mousse” nem “suflé” (olha, “soufflé”, é Francês, que nojo, iach!) ou que tenham raiva a “olés”, a “faenas, a “chicuelinas” (espanholadas tauromáquicas por junto, t’arrenego). Pois nada disso interessa. O epíteto assenta inteirinho e em exclusivo, segundo a estranha formulação do autor, nos lombos dos acordistas portugueses, os patuscos que pretendem esgalhar uma “língua unificada” e tudo.

Mas que raio de confusão, caro JPC! Não é isso o que pretendem patuscos nem o que procuram vendidos nem o que privilegiam traidores; de todo; ou, melhor dizendo, isso tanto se lhes dá como se lhes deu, essa tanga da língua “univerrsáu” serve exclusivamente para fingir que a CPLB não é uma máquina brasileira de fazer negócios e que o principal objectivo desta não é o saque metódico das riquezas naturais das ex-colónias portuguesas em África.

Convém não confundir a narrativa para enganar saloios e deslumbrados com a geral ânsia de enriquecer rapidamente dos inventores da dita narrativa e seus lacaios. Não passam, como nunca passaram, de paus-mandados do seu patronato tuga-zuca — os ladrões podres de ricos da “santa aliança” atlântica (abençoada pela própria Igreja Católica), empresários políticos e políticos empresários com ligações nada discretas a irmandades não muito secretas com evidentes ligações aos meandros do poder político.

Bom, findemos, que isto ele é viscosidade a virar com pinças, portanto já basta o que basta, fiquemo-nos pelo essencial.

Pareceu-me da leitura do artigo que a JPC baralharam-se-lhe um pouco as ideias mas devo com certeza ter entendido mal. Ou então não entendi de todo.

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Português, uma língua vadia

João Pereira Coutinho

“Gazeta do Povo”, 12.04.22

São Paulo, 11 horas da manhã. Entro no táxi, indico o endereço ao motorista, o carro inicia a viagem. Conversamos. Política, pandemia, trânsito na cidade. A certa altura, ele pergunta: “De onde você é?” Respondo, um pouco surpreso: “Portugal”. Ele sorri e depois elogia: “Você fala muito bem a nossa língua”.

Agradeço, honrado: quem diria que, vindo de Portugal, eu saberia falar essa língua chamada português? Aliás, até acrescento: “Língua difícil, mas eu vou chegar lá”. Ele, compreensivo, consola a minha insegurança: “Imagina! Já está bom assim”.

Seria fácil olhar para o motorista e deplorar a ignorância dele. Será que ele nunca estabeleceu uma ligação entre “Portugal” e “língua portuguesa”? Pergunta absurda. Talvez o ignorante seja eu. Talvez o meu português seja mesmo diferente do dele. Talvez ele fale “português” e o meu português seja uma melodia parecida, familiar, quase igual. Quase.

Não sabem os puristas da língua, esses que sonham com um idioma unificado e até fizeram um Acordo Ortográfico, que o português nasceu antes de Portugal e que continuará a evoluir fora do país?

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Lusophonia

Keng teng fortuna ficah na Malaka,
Nang kereh partih bai otru tera.
Pra ki tudu jenti teng amizadi,
Kontu partih logo ficah saudadi.Ó Malaka, tera di San Francisku,
Nten otru tera ki yo kereh.
Ó Malaka undi teng sempri fresku,
Yo kereh ficah atih moreh.
Quem tem fortuna fica em Malaca,
Não quer partir para outra terra.
Por aqui toda a gente tem amizade,
Quando partir logo fica a saudade.Ó Malaca, terra de São Francisco,
Não há outra terra que eu quero.
Ó Malaca, onde tem sempre ar fresco,
Eu quero ficar até morrer.

O português de Malaca, também denominado cristão, papiá kristang ou simplesmente papia, é uma língua crioula de base portuguesa e com estrutura gramatical próxima do malaio, falado em Malaca, Malásia e Singapura. [Wikipedia]

Cada vez mais sistematicamente somos aspergidos com grossas gotas de propaganda “lusófona”, uma das matérias de intoxicação e estupidificação em massa da preferência dos acordistas. Esta espécie de bênção, que paradoxalmente lança uma maldição por sobre as cabeças de gado por eles contadas na imensa manada, visa tentar deslumbrar o gado vacum com a “iluminação” beata de um edílico império linguístico que, abreviando em extremo e em linguagem corrente, não lembraria ao careca, vulgo, ao diabo.

Presumem os auto-ordenados padres da Santa Madre Igreja dos 250 Milhões que assim procedendo, com umas ladainhas beatas e viscosas, arrebanharão cada vez mais crentes e espalharão a sua fé, a crença cega no II Império brasileiro em versão pastoral, o “milagre” re-baptizado como “língua universáu” ou, para os mais “lá de casa”, como “lusofonia”.

Fonia essa da qual os brasileirófilos expulsaram prudentemente qualquer vestígio daquilo que, apesar da limpeza étnica e do extermínio histórico-cultural concomitantes e em simultâneo, existe mesmo, de facto: a verdadeira Lusofonia, isto é, o longo, profícuo e antiquíssimo rasto que a Língua Portuguesa disseminou por todo o planeta.

Evidentemente, dado que a propaganda da CPLB acordista tem a ver unicamente com a “difusão e expansão da língua” brasileira no mundo, são metodicamente ocultados — no escabroso processo de apagamento da História — os diversos crioulos de base portuguesa principalmente no extremo-Oriente e em África: o papiamento de Aruba, Bonaire e Curaçao, o Kristáng na Malásia, o Indo-Português do Ceilão (Sri Lanka), o Português e o crioulo de Damão e de Diu (em Goa é “só” mesmo Português), a mescla que são as variantes de Tétum (Timor), os crioulos em diversas ilhas e enclaves africanos ou ainda os casos mais diversificados — também significativos — de Macau (e Hong Kong!), Cabo Verde (onde o crioulo é língua nacional), Casamansa (Senegal), Singapura, Batávia (Jakarta, Indonésia) e todos os outros que felizmente alguns linguistas portugueses persistem em identificar, estudar, divulgar e até incentivar. Isto sim, conjuntamente com os Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP), é Lusofonia. No âmbito da qual os diversos falares dos 27 Estados brasileiros, todos eles de base portuguesa, cumprem papel, função e ordem de valores equivalentes aos de qualquer outro dos inúmeros crioulos do género que a nossa Língua gerou ao longo de cinco séculos.

A Lusofonia é, por conseguinte, um facto que rigorosamente nada tem a ver com o “gigantismo” do Brasil (clinicamente falando, uma variante de elefantíase linguística) e muito menos compreende as ânsias tardo-colonialistas e neo-imperialistas dos magnates sedentos de lucro que mandaram inventar um argumento (o AO90) para encobrir os negócios chorudos feitos à sombra da bananeira a que chamaram CPLP.

Sintomas visíveis desta ganância patológica e do inerente encobrimento por iniciativa dos políticos envolvidos são, por exemplo, a eliminação sumária — inclusivamente em discursos oficiais — de qualquer referência não só aos diversos crioulos mas também aos variadíssimos falares das comunidades portuguesas espalhadas pelo mundo; tudo isso passou estrategicamente a ser por eles ignorado, a bem da dita “lusofonia”, ou seja, como os crioulos não sejam mais do que umas coisinhas faladas por meia dúzia de exóticos labregos que deviam era estar “devíamos escrever todos brasileiro“: escrever e falar, é claro, que dá muito menos “trabalho”.

Enfim, a “lusofonia” (a de brincadeira) tem muito que se lhe diga. É sobre tal bizarria que rezam os dois conteúdos que se seguem: um texto laudatório enaltecendo a coisa (redigido em Português-padrão, reconheça-se esse mérito) e um “sketch” (“esquete”, em brasileiro) propagandístico tecendo loas e entoando hossanas aos “milhões” de brasileiros (mas omitem os milhões que os brasileiros já estão a empochar, olha que aborrecido).

Conclui-se de ambos, artigo e “clip”, que não sei bem o quê, e tal e tal, ah, a “expansão”, ena, a “quinta língua mais falada” em Klingon (parece), a “segunda no hemisfério” inferior do hemisférico que há no museu do Botafogo, tudo coisas assim, maravilhas, os ingleses estão raladíssimos com a “língua mais falada”, diz que Sua Alteza a Rainha até anda com insónias, o Macron vai convocar o Conselho de Guerra, em Madrid já há tumultos (“joder, qué pasa con el brasileño, coño?”), o mundo inteiro está raladíssimo com o festival de rapapés artilhados, isto do império linguístico ainda vai dar bernarda, até em Berlim já começaram a afiar as facas longas.

Perspectivas lusófonas para 2022

Jornal “O Diabo”, 13.01.22
Renato Epifânio

 

O ano de 2021 acaba novamente sob o espectro da pandemia, mas esperamos que o novo ano que aí vem seja realmente um ano de viragem – não apenas em relação à pandemia, mas também no que respeita à Lusofonia.

A esse respeito, o ano de 2021 trouxe alguns bons sinais, sobretudo com a nova Presidência da CPLP (Comunidade dos Países de Língua Portuguesa), assumida por Angola, que reiterou o seu empenhamento na nossa Comunidade, apostando numa maior cooperação económica.

Para o avanço real da CPLP, não bastam, contudo, Portugal e Angola – e todos os demais PALOPs: Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa. Sem esquecer Timor-Leste, o Brasil é uma peça fundamental deste tripé, deste triângulo atlântico. Tal como a União Europeia só funciona verdadeiramente com o eixo franco-alemão, também a CPLP só avança quando este triângulo está activo.
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