EnidBlyton e alterações ‘woke’: ignorância e ilegalidade
Patricia Akester
“Diário de Notícias”, 07 Abril 2023
Como leitora voraz que sempre fui, os livros de EnidBlyton não me passaram ao lado. Devorei os mistérios e aventuras dos Cinco e com eles percorri a sua ilha favorita, andei no colégio de Santa Clara, em Londres, com as gémeas O’Sullivan, frequentei o colégio das Quatro Torres, na Cornualha, acompanhei um clube de pequenos detectives, os Sete, detendo senhas para as suas reuniões secretas, trepei intrepidamente a Árvore Longínqua e ajudei diligentemente a resolver vários mistérios que tendiam a despontar em Peterswood, no condado de Buckinghamshire.
Infelizmente o lobby anti-Blyton não partilha do meu entusiasmo e tem atacado ferozmente a sua obra, apelidando-a de snob, misógina e racista. No seio deste movimento os livros de Blyton foram banidos de numerosas bibliotecas e novas edições têm emergido, uma vez revistas e reeditadas, com nomes, personagens e enredos adulterados com vista a — pasme-se — convertê-las em obras politicamente correctas, isto é, cumpridoras de imperativos «woke». A título de exemplo, a revisão das obras tem abarcado a eliminação de nomes considerados ofensivos, o respeito pela neutralidade de género, a divisão de tarefas domésticas, o cumprimento dos horários escolares e a resolução de mistérios e acção e aventura sob supervisão de um adulto.
Esquecem que os maravilhosos livros de Blyton encerravam aventura, mistério e magia, fornecendo simultaneamente (pormenor que tende a ser afastado) lições, ensinamentos e pedagogia. Os personagens eram recompensados por actos de generosidade, bondade, honestidade, humildade e outras virtudes e punidos quando mentiam, roubavam, tinham acessos de raiva, eram mal-educados, gananciosos, egoístas ou cruéis.
Ignoram que sob um estilo de escrita despretensioso Blyton gerou enredos repletos de complexidade, explorando, por exemplo, as questões de raiz que levavam os adolescentes a incorrer em comportamentos socialmente inaceitáveis. Olvidam que as referências a poder monetário eram raras e que o sucesso dos protagonistas de Blyton advinha da sua habilidade intelectual, da sua capacidade de trabalho, do seu bom carácter e de uma pitada de magia. Desconsideram que Blyton criou personagens femininas cheias de garra, como DarrellRivers ou as gémeas O’Sullivan e que as suas personagens mais célebres e memoráveis são raparigas (e não rapazes) obstinadas, ousadas e rebeldes.
Talvez o politicamente correcto deva adquirir perspectiva. A obra de EnidBlyton é um produto de seu tempo e do seu espaço e há que a reconhecer como tal. O mesmo sucede, por exemplo, com os livros de Joseph Conrad, de AldousHuxley e de Agatha Christie. Se as personagens de Blyton são demasiadamente abastadas que destino devem ter os mordomos e as empregadas que surgem aos pontapés na obra de Agatha Christie? Se as histórias de Blyton têm laivos de racismo como devemos encarar a obra de Shakespeare, designadamente a referência ao mouro que habita Otelo e ao judeu que tem lugar proeminente no Mercador de Veneza?
As alterações em causa retiram à obra a verdade da época e do espaço em que foi escrita, vedando a constatação e a avaliação da evolução histórica, sociológica e literária. O panorama literário é assim empobrecido, podendo o leitor chegar a um ponto em que apenas tem acesso a literatura contemporânea (politicamente correcta, claro está), sendo as restantes obras literárias banidas e/ou censuradas em nome (reparem no paradoxo) de valores liberais — e convertendo-se os livros de outrora em artigos de colecção.
Impõe-se ainda referir que as revisões acima referidas não são lícitas, em muitos países, graças a algo que o Direito de Autor qualifica como os direitos morais do autor. Tais direitos decorrem do reconhecimento da natureza eminentemente pessoal da criação do espírito e do vínculo, imperecível, entre criador e obra.
O nascimento dos direitos morais remonta ao século XIX, salientando-se, em 1814, o facto de um Tribunal francês ter reconhecido que certo autor tinha direito a que o seu manuscrito não fosse alterado, sem a sua autorização, pela editora à qual havia sido submetido (Billecocq v. Glendaz, Tri. civ. Seine, 17/08/1814). Em 1928, os direitos morais foram incorporados na grande Convenção de Berna para a Protecção das Obras Literárias e Artísticas, com reflexos na lei portuguesa que declara, sem hesitação, que o autor goza do direito de assegurar a genuinidade e integridade da sua obra — direito esse inalienável, irrenunciável e imprescritível, cuja guarda passa, após a sua morte, para os seus sucessores.
Consequentemente, embora o estudo da obra de Blyton, incluindo no que toca a preconceitos e estereótipos seja bem-vindo sob uma perspectiva académica, alterar a obra traduz-se em mutilação e deformação da mesma, desvirtuando-a e podendo afectar a honra e reputação do seu autor e consistindo, pois, em acto ilícito em muitos pontos do globo.
Em suma, retirar a obra do contexto em que foi redigida e actualizá-la de acordo com uma das linhas vigentes de pensamento é mais uma tentativa de mudar a História, sendo pelos motivos acima apontados fruto de ignorância e de esquecimento e empobrecendo deste modo o quadro cultural mundial.
PatriciaAkester
Fundadora de GPI/IPO, Gabinete de Jurisconsultoria e
Associate de CIPIL, Universityof Cambridge

[Transcrição integral de artigo, da autoria de Patricia Akester,
publicado no “Diário de Notícias” de 07 Abril 2023.
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