Rábu dji peichi ná Nétchifilix

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Palavras e expressões-chave: dobragem/dublagem, “língua universau“, valor económico da língua, legendagem/subtitulação, tradução Português-Brasileiro, AO90, CPLB, neo-colonização, terraplanagem cultural.

Já sabíamos que no Brasil tudo o (muitíssimo pouco) que ali chega de Portugal é imediatamente traduzido para a língua local (a brasileira, claro). E alguns dos tugas que lá aterram, exímios poliglotas, não se coíbem de falar (e escrever) num Brasileiro mais ou menos fluente e até, por vezes, não muito ridículo: o “ator” Ricardo Pereira, por exemplo, ou, de forma exponencialmente mais circense, o actual PR ou o ex-PM Durão Barroso, também por exemplo.

Tudo nos conformes, portanto, neste particular: um “seriado” português, legendado em qualquer dos países de língua inglesa ou dobrado em Francês na Suíça e em Castelhano em Espanha, aparece agora “dublado” no Brasil. E não se trata de uma excepção; pelo contrário, é esta a regra. Para os brasileiros, o Português é tão incompreensível como o servo-croata.

Tudo encaixa na perfeição, hem? O #AO90, ficção subjacente à criação da Comunidade dos Países de Língua Brasileira (CPLB), foi impingido (por traidores portugueses) com o engodo de uma putativa “unificação”. Ora aí está ela: em Portugal e nos PALOP, a única língua permitida é a brasileira. Para os donos da língua, o Português não passa de uma bizarria, uma caturrice, um dialecto esconso porque… “eles são 220 milhões e nós só 10 milhões“.

Rabo de Peixe

Quando um barco cheio de cocaína se afunda na costa da ilha onde mora, Eduardo vê uma oportunidade para ganhar dinheiro que tem tanto de emocionante como de arriscado.
Com:José Condessa,Helena Caldeira,André Leitão
Criado por:Augusto Fraga [“Netflix” Portugal]
A série Mar Branco (ou Rabo de Peixe, no título original) chegou ao catálogo da Netflix na última sexta-feira (26). A produção já é destaque entre os assinantes, ocupando a sexta posição do Top 10 do streaming. A trama acompanha quatro jovens de um pacato vilarejo açoriano que veem suas vidas mudarem completamente quando um barco repleto de cocaína afunda na ilha. Com direção de Patrícia Sequeira, a série portuguesa baseada em fatos reais tem como showrunner Augusto Fraga e é estrelada por José Condessa, Rodrigo Tomás e Helena Caldeira. [“Techtudo” (Brasil)]

[“Tweet” apontado por Mário de Sá-Peliteiro]

«Atrás dos tempos vêm tempos» [Ana Cristina Leonardo, “Público” 31.03.23]

Atrás dos tempos vêm tempos

Ana Cristina Leonardo

“Público”, 31.03.23

Se o mais provável; à medida que envelhecemos, é vermos aumentar o desajuste entre nós e mundo — escrevo provável, não inevitável — existem acontecimentos ou factos ou realidades que nos ilibam da acusação de “velhos do Restelo”, essa figura camoniana de um pessimismo “só de experiência feito”, talvez injustamente desamada.

Relembremos Billy Wilder, o homem que ao realizar Some Like it Hot (Quanto Mais Quente Melhor, 1959) ou Avanti (Amor à Italiana, 1972) terá feito mais pela liberalização dos costumes do que os três longos dias de pândega em Woodstock.

Apesar disso, diria ele, cumpridos os seus setenta anos: “They say Wilder is out of touch with his times. Frankly, | regard it as a compliment. Who the hell wants to be in touch with these times?”

Mais perto de nós, infelizmente também morto, Leonard Cohen, embora sem se congratular por ter estado alguma vez em dessintonia com os tempos, nem por isso deixaria de cascar no movimento hippie seu contemporâneo, numa entrevista que deu ao crítico João Lisboa corria o ano de 1994: “Depois apareceram os hippies que não me interessaram, sobretudo quando começaram a poluir os rios e a deixar lixo por todo o lado, quando iam para o campo adorar Deus e a Natureza, Eram péssimos campistas. Eu fui escuteiro, logo, posso dizê-lo”.

É da circunstância de serem invariavelmente verberadores que se extrai a comicidade dos velhos Marretas, mas The Muppets show vivia precisamente do exagero, do burlesco e do humor. Na vida real, os críticos arraigados e avançados na idade não costumam ter graça nenhuma. Dito isto, por seu turno, os bajuladores de toda e qualquer novidade avançados na idade são muitas vezes patéticos. Quando não danosos.

Veja-se o caso do argumento muito em voga na época — e usado por gente com mais do que idade para ter juízo — que insistiu em casar à contestação ao Acordo Ortográfico de 1990 da Língua Portuguesa com uma posição geracional. Jovens pelo sim. Velhos pelo não. Viu-se.

Os seus maiores promotores e defensores, já na altura somando décadas consideráveis, João Malaca Casteleiro, por Portugal, e Antônio Houaiss, pelo Brasil, foram, entretanto, fazer companhia a Billy Wilder e Leonard Cohen, o primeiro em 2020 com 83 primaveras, o segundo em 1999 com idade idêntica. E mesmo descontando o tempo decorrido entre a aprovação do AO pelos deputados da República e a morte dos dois linguistas, mostra-se difícil imaginá-los em 1999 a hastear o texto do Acordo com o mesmo sorriso largo com que o então jovem Daniel Cohn-Bendit encarou a cova dos leões em Maio de 68.

Escusado será dizer que jovens e velhos podem ser igualmente irritantes. Sobre o assunto, nada como ler Diário da Guerra aos Porcos do argentino Adolfo Bioy Casares (Cavalo de Ferro, 22 edição, 2015). E que me perdoem se por acaso repito a recomendação: é assacá-la à idade.

Por falar em Argentina e em Adolfo Bioy Casares, leio que quem morreu foi Maria Kodama, mulher e herdeira de Jorge Luis Borges (grande amigo de Casares), cujos traços asiáticos eram menos acentuados dos que os de Yoko Ono — o que é natural, dado que ambos, mãe e pai de Yoko eram japoneses, enquanto Kodama nasceu de pai alemão e mãe natural de Tóquio imigrada para Buenos Aires. Foi ao ler a notícia da sua morte que me lembrei de um apaixonado espanhol coleccionista de Borges que há muitos, muitos anos — ainda existia a Livraria Castil de Alvalade em Lisboa e o livreiro Miguel Bastos não se tinha apagado para sempre numa malfadada estrada a caminho de Coruche –, após comprar todas as traduções em português do autor de O Jardim dos Caminhos que se Bifurcam, ficou por ali, indiferente ao pó dos livros e ao meu horário de saída, queixando-se de Kodama com uma veemência que Maomé não pôs na condenação do toucinho, nem os fãs dos Beatles nas críticas a Yoko Ono ou outros descerebrados a Salinger.

Todo este intróito, que vai longo e saiu particularmente enlutado, serve, claro, para me antecipar às acusações de catastrofista.

Porque o caso é este: ao mesmo tempo que em Portugal — em Vizela, mais precisamente — se inaugura uma mais do que ridícula estátua a António Guterres — ficamos sem palavras para descrever aquele susto de quatrocentos quilos e dois metros de altura encomendado pela Câmara Municipal a uma empresa amiga, um Guterres com papeira, calças a fugir à polícia e raquitismo nas extremidades –, do outro lado do mundo, o extraordinário David de Miguel Ângelo causa polémica numa escola cristã da Florida, levando à demissão da directora.

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Não, não peço desculpa. E então?

Não será pelo enviesamento político-partidário obscenamente óbvio, nem pelo tom panfletário, o desfiar ad nauseum da cartilha de lugares-comuns tão caros ao vazio de ideias. De resto, a expressão do vazio absoluto através de palavras ocas e chavões de manual é parte integrante do discurso formatado que visa exclusivamente formatar. Não será, portanto, devido ao chorrilho de vacuidades expresso no choradinho ritual em que se viciaram estes tipos.

Quanto a paleios ocos — ou a paleios, genericamente –, cada qual sabe de si e daquilo a que lhe apetece dar crédito, o que, no caso, por exclusão de partes implicaria apenas… nada e coisa nenhuma, reacção alguma, o mais soberano desprezo.

Porém. Nesta entrevista, publicada na web há uns dias, aquilo que não pode passar sem resposta — mesmo que se ignorem as intenções subjacentes do “artista” e respectiva clique — é o acinte de que dão bastas mostras o entrevistado, a entrevistadora e o próprio pasquim electrónico onde o “diálogo” está miseravelmente exposto.

Dando de barato as tretas politicamente correctas e muito práfrentex, apesar de existirem relações de causa e efeito entre as ditas tretas e as igualmente tretas acordistas, já que ambas as “teorias” utilizam os mesmos adjectivos, as mesmas formulações e a mentira a granel como linha programática, pois ainda assim as reacções dividem-se não em dois mas em três “partidos”: a algumas pessoas, uma coisa destas pode provocar incómodo, o que será aliás naturalíssimo, isso é o mínimo que se pode esperar de quem ousa pensar pela sua própria cabeça, haverá com certeza muita gente que não vai gostar absolutamente nada e, de entre estes, é bem possível que um ou outro reaja com algo mais do que umas “bocas”.

Ao fim e ao cabo, não se aplica a todos nem é qualquer lei universal que se deva levar desaforo para casa (excelente expressão idiomática da língua brasileira, também para variar) ou, em Português de lei, não reagir a provocações. Assim, contra a tradição — e a própria linha editorial — do Apartado 53, desta vez, para variar, a introdução do conteúdo transcrito é uma simples opinião; que, num país pelo menos teoricamente livre, vale tanto como qualquer outra — mesmo as dos Lucas deste mundo, que são absolutamente livres de bolçar alarvidades e envergonhar-se a si mesmos.

Trata-se de uma entrevista particularmente insultuosa, ainda que o entrevistado tente não ultrapassar as marcas de possíveis contratos comerciais, o que muito provavelmente poderia acarretar prejuízos financeiros (e aí… parou, com peseta não se brinca), e por isso está mesmo a pedir resposta.

Que é esta: não.

Não, nós, no nosso país ou até fora dele, não temos quaisquer «questões de falta de memória muito graves, ou de enviesamento da memória». Ó Luca, pá, não te rales com a nossa gente, com a nossa memória, rala-te com a tua gente e rala-te com a tua própria memória, que pelos vistos até já nem te recordas do país onde estás.

Não, o Presidente da República Portuguesa — mesmo sendo o actual um brasileirista inveterado — não tem nada que pedir desculpa ou, aliás, seja o que for, a quem for e por que motivo for. E olha cá, ó Luca, pá, quando te dirigires ao Presidente de Portugal o tratamento é de Vossa Excelência para cima, vê se entendes, e mete lá o teu «‘Peça desculpas, senhor presidente’» where the sun never shines.

Não, Portugal não foi jamais essa coisinha horrorosa: «Portugal ser um dos dois países que mais praticou esse colonialismo, que mais praticou a escravatura mercantil moderna». Ó Luca, pá, vai estudar umas partituras (sabes ler música, espero), não te metas na floresta para ti virgem da História — e não confundas esta com a da tua terra –, essa bacorada da “escravatura mercantil moderna” é intocável (na acepção indiana do termo), caramba, Luca, vai lá para as congas, atão vá.

Não, «o colonialismo português» não foi absolutamente nada o «horror» que acabaste de inventar. Bem sei que a sugestão deve provocar-te um acesso de urticária mas, ó Luca, pá, experimenta ler umas coisinhas de vez em quando, deixa lá o samba e o futchibóu. Ou isso, um bocadinho de leituras, ou então podes sempre deixar — como se diz por aqui, “deslargar” — o país que tanto detestas e regressar a penates ou até, usando o passaporte, do tal país “detestável”, ir para onde te der na gana.

Não, era só o que mais faltava, agora ainda temos de levar com este estrangeiro, mas por alminha de quem, a “diagnosticar” «problemas que ainda existem de racismo, xenofobia» (em Portugal, não no Brasil) e a “receitar” a respectiva «superação». E esta “consulta” grátis, de tão conhecido quanto conceituado “especialista” (com pós-doutoramento em Tudologia, aposto), incluiu ainda outras amostras de ingerência nos assuntos internos do país a que os brasileiros chamam “terrinha”.

Não, por fim, à incrível, inaceitável, abjecta “exigência” deste e de outros Lucas. Não por mero acaso, está bem de ver, tamanha enormidade encabeça este nojo servido em forma de entrevista mas que afinal não passa de um manifesto de propaganda lusofóbica.

Não, Portugal não tem quaisquer motivos para “pedir desculpas”. Portugal é o povo português. O povo português jamais teve, tem ou terá que “pedir desculpas” por ser o que foi e o que é, pela sua História ou pela sua identidade colectiva.

Não posso nem devo nem quero falar por ninguém, à excepção de mim próprio. Queres desculpas, ó Luca? Por coisa nenhuma, certo? Acabaste de esgalhar aquelas patacoadas, não foi? Razões acrescidas.

Como português, apenas um deles, faço a minha parte.

Não. Não peço desculpa.

E então?


Ó tu, Sertório, ó nobre Coriolano,
Catilina, e vós outros dos antigos
Que contra vossas pátrias, com profano
Coração, vos fizestes inimigos:
Se lá no reino escuro de Sumano
Receberdes gravíssimos castigos,
Dizei-lhe que também dos Portugueses
alguns traidores houve algumas vezes.

Camões


“Portugal está super-atrasado no pedido de desculpas aos colonizados”

www.noticiasaominuto.com, 07.03.23
entrevistadora: Natacha Nunes Costa

Há pouco mais de 10 anos, o cantautor carioca Luca Argel trocou o Brasil por Portugal, onde tem abraçado a música como fonte de prazer, de sobrevivência, mas também de contestação.

Depois de lançar ‘Samba de Guerrilha’, onde mostrou a sua versão de sambas históricos, que falam de racismo, escravatura e desigualdade, o artista apresenta-nos agora ‘Sabina’, o seu quarto álbum de originais, onde recupera e homenageia a história e o mito de uma vendedora que foi símbolo da persistência do racismo, após a abolição da escravatura e exemplo da solidariedade de rua que historicamente o enfrentou.

Em conversa com o Notícias ao Minuto, Luca Argel falou não só de musicalidade, mas também das mensagens que pretende transmitir com as canções e durante os concertos. Mostrou-se aberto ao “rótulo” de músico de intervenção” e apelou a que todos façam a sua parte para que Portugal não cometa os mesmos “erros” do Brasil, com a ascensão da extrema-direita.

Apesar de gostar de viver em Portugal, o artista realçou que o nosso país tem “alguns “problemas de memória” e que há um pedido de desculpas que falta o país fazer, algo que também retratou em ‘Sabina’.

Em breve, o disco será apresentado em Lisboa e Porto. Por enquanto, já pode ouvi-lo no canal de Youtube de Luca Argel.

Lançou no dia 22 de Fevereiro ‘Sabina’. Para quem ainda não sabe, quem foi esta vendedora de laranjas e o que representa para o povo brasileiro?

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«Um contínuo elogio da loucura» [Maria do Carmo Vieira, 11.02.23]

Ortografia e “linguagem inclusiva”: um contínuo elogio da loucura

Senhor Presidente, certamente que verá e ouvirá os inúmeros erros decorrentes do uso do AO 90 e por isso lamento que silencie essa situação.

Maria do Carmo Vieira
“Público”, 11 de Fevereiro de 2023

No seu filme O Destino (1997), Youssef Chahine (1926-2008), realizador egípcio, mostra-nos, a dada altura, o filósofo do Al-Andaluz, Averróis, em discussão com o filho mais novo do Califa, Al-Mansur, recém-fanatizado em dogmas forjados e fundamentalistas (numa associação às seitas jihadistas). Transcrevo as suas palavras, bem elucidativas da leveza com que se encara o estudo e da arrogância com que se impõe uma pseudo-sabedoria: És tão vazio que repetes todos os disparates de que te enchem. Um poema e dois versos corânicos e julgas-te poeta e sábio? Que sabes de medicina e de astronomia, de matemática e de química e de filosofia? Sabes o suficiente do amor, da verdade, da justiça para afirmar-te capaz de espalhar a palavra de Deus? Responde!”

Certamente que a sua leitura nos remeterá simbolicamente para inúmeras situações que já presenciámos, desconhecendo contornos, ou vivenciámos directamente, conhecendo-as por dentro, resumindo-se a questão grosso modo à facilidade com que aprendizes de feiticeiro (ou popularmente “chicos-espertos”) se arrogam o direito de impor, e serei benévola no substantivo, o erro e divulgá-lo religiosamente como dogma, em nome de qualquer coisa que é sempre perspectivada como um bem. Uma atitude que não me coibirei de descrever como execrável. E não abdico do termo porquanto a acção das brilhantes mentes, habitualmente matizada pelo cinismo de um sorriso benevolente, nos impõe a ignorância, conseguindo, quantas vezes, apagar valores que considerávamos profundamente gravados em nós.

A pressão que se abate sobre quem tenta reagir é tão feroz que o facto de ter usado acima o termo, gramaticalmente correcto, de “substantivo”, poderá ser ajuizado, pelos criadores da TLEBS, que à revelia o transformaram em “nome”, como um acto de “resistência à mudança”, expressão acusatória para quem põe em causa “a nova ordem”. E até o facto natural de referir por Escola Primária o agora designado 1.º ciclo pode ser, para os fundamentalistas da “nova escola”, objecto de censura por ainda estarmos imbuídos, imagine-se, de um “saudosismo salazarista”.

E neste contínuo elogio da loucura que transparece nos actos e nas palavras de quem quer impor-se, arrastando os outros nas suas tortuosas experiências, vamos assistindo a uma miríade de situações que parecem não ter fim e que, ao invés de serem travadas ou avaliadas criticamente por quem de direito, recebem o apoio, de forma velada ou não, de quem abdicou de ser um advogado à altura. A este propósito penso no Presidente da República e no seu papel quer em relação ao Acordo Ortográfico de 1990 (AO90) quer à dita “linguagem inclusiva”.

Comecemos pelo AO90, cujo processo inicial se deveu à vontade de um político, o presidente do Brasil, José Sarney, que, movido sabe-se lá por que razões, se lembrou de promover, em 1986, um encontro, no Rio de Janeiro, com todos os países de língua oficial portuguesa, e cujo texto resultante deste encontro – Acordo Ortográfico de 1986 – foi fortemente contestado pelos linguistas e nunca aprovado por eles nem pela sociedade civil.

É por demais conhecido o que se passou depois da paciente espera para uma melhor oportunidade de concretização, que surgiria em 1990, sendo a novidade justificada numa inimaginável e acientífica “Nota Explicativa ao Acordo Ortográfico de 1990”. Bastar-nos-á recordar o pretenso objectivo para este AO: a irrealizável “unidade ortográfica”, na diversidade das lusofonias. Amplamente divulgadas foram também as negociatas que adulteraram o conteúdo do Tratado Internacional, originando protocolos modificativos e ratificações que até agora não se fizeram. A discussão a seu tempo feita na Assembleia da República é também um exemplo flagrante de um elogio à loucura, ajustando-se igualmente ao teor das palavras de Averróis. Na verdade, a ignorância elevou-se e nem faltou a galhofa, entre os deputados presentes, até à insultuosa votação final. As actas podem ser consultadas.

Feita esta breve introdução, lembremos como o Presidente da República, no seu primeiro mandato, se mostrou interessado pelo tema do acordo ortográfico, polémica que ainda se mantém, parecendo, nessa altura, não tencionar abandonar essa preocupação. Nas palavras de Pedro Mexia, um dos seus assessores culturais, “havia a expectativa” de que o Presidente reabrisse o debate sobre a matéria, o que aliás lhe fora sugerido também pelo prestigiado Professor Artur Anselmo, então presidente da Academia das Ciências.

Anos mais tarde, o acordo, fruto de um qualquer truque de ilusionismo amador, tornou-se “um não-problema”. Em suma: a língua portuguesa deixou de ser um património cultural a defender, estando sujeita a jogadas políticas, e o seu ensino deteriorou-se no convívio com o caos determinado pela implementação do famigerado acordo, um caos que não só se verifica na ortografia, como também na pronúncia de “novas palavras” e nos equívocos que gera (retractar, agora sem “c” é disso um exemplo, entre tantos outros).

Lembrar-se-ão também da Associação de Professores de Português (APP) que solicitou recentemente ao ministro da Educação que os alunos brasileiros não fossem penalizados nos exames, devido às diferenças linguísticas que colidem com a norma portuguesa. Por estranho que pareça, não rebateram a absurda “unidade ortográfica” que justificou o AO e que a APP sempre apoiou. Afinal, a situação exposta pôs a nu o inegável: a impossibilidade de uma unidade ortográfica.

Senhor Presidente, certamente que verá e ouvirá os inúmeros erros decorrentes do uso do AO 90 e por isso lamento que silencie essa situação, que julgo não se adequar a um professor e a um Presidente que afiançou “ser de todos os Portugueses”. Lamento igualmente que os seus assessores culturais, alguns deles críticos do acordo, e amantes da palavra, não lhe tenham sugerido a imperiosa necessidade de um debate académico e científico sobre a matéria quando é por demais evidente a permanência da polémica, existindo livros que a analisaram em pormenor, nomeadamente os do professor A. E.[1], linguista da Universidade Nova. Os exemplos de erros são incontáveis e a sua ininterrupta proliferação vilipendia a Língua Portuguesa, mal falada e mal escrita, com a agravante de nem mesmo o que ficou registado no texto da Nota Explicativa se cumprir.

São inúmeros os professores que respondem a dúvidas dos alunos sobre o modo correcto de escrever algumas palavras, tal a confusão que reina. Um colega meu de Tomar, João Barroca, tem ao seu dispor centenas, senão milhares, de exemplos das confusões ortográficas no quotidiano e na comunicação social. Situação idêntica em instituições escolares, camarárias e outras (elevado número de Editoras, entre as quais a Fundação Francisco Manuel dos Santos, plataformas de streaming…) que deviam prezar pela correcção e a esquecem.

Lamenta-se igualmente a resignação de alguns intelectuais que traem, com o seu silêncio, a causa em que publicamente se movimentaram e empenharam, apresentando inclusive propostas, como aconteceu com o Professor António Feijó, da Faculdade de Letras de Lisboa, em relação a um referendo, sugestão com a qual não concordei, na altura, mas para a qual trabalhei arduamente, e em vão, com grande número de voluntários.

Não posso deixar de transcrever também as razões que assistiam ao então director e presidente do Conselho Científico da Faculdade de Letras (2013), agora presidente da administração da Fundação Gulbenkian, quando escreveu ao presidente da Comissão de Educação, Ciência e Cultura, José Ribeiro e Castro, a propósito do AO: “[…] Arrogar-se o Estado legislar sobre intangíveis como a língua, que na realidade o excedem, seria uma extensão abusiva das suas funções. Numa altura em que, em Portugal, se procura definir com parcimónia quais as funções do Estado, a sua extensão a um domínio como a língua é uma forma de cesarismo indesejável. É este o meu primeiro argumento contra o Acordo. […] Finalmente, alterar o modo como escrevo para o modo como o Acordo impõe que escreva é uma forma de violência sobre o que de mais visceral pode ser a identidade pessoal. É nesta visceral violação subjectiva, que é a de todos os que, escrevendo de um modo, se vêem coagidos a mudá-lo, que reside o meu segundo, e último, argumento contra o Acordo. Se se entender que esta posição não é ‘prática’, considere-se a desoladora pobreza conceptual deste termo no debate público, que ignora versões nocionalmente mais ricas e densas do que é ‘prático’. Eminentemente ‘práticas’ são noções como a de ‘direitos individuais’, a de ‘personalidade’, de ‘solidariedade’, ou de um valor demasiado rarefeito na história moderna e contemporânea de Portugal, à sombra do qual termino, a ‘liberdade’.”

Também na Gulbenkian, encontramos estranhas convivências determinadas pelo AO: “Egito”, “egípcios” e “egiptólogos”, a propósito de Faraós superstars – designação tão em moda, a fazer lembrar Oeiras Valley!

Os erros mais crassos, e que não têm fim à vista, dizem sobretudo respeito a vocábulos cujos “c” e “p” continuam a ser ceifados a torto e a direito, mesmo quando lidos. “Contato” e “Fato” atingem o top, sendo o jornal Expresso o campeão, mas não falta também o “inteletual”, o “abruto”, a “convição”, a “batéria” e tantos outros que o Senhor Presidente certamente encontrará no seu dia-a-dia. Não o preocupa esta situação? Não o preocupam os alunos que diariamente são confrontados com erros? Não o preocupa que os professores, na sua maioria contrários ao acordo, sejam forçados a cumpri-lo sob pena de lhes ser instaurado um processo disciplinar?

Reparei igualmente que o Senhor Presidente parece ser sensível à linguagem inclusiva”, uma linguagem criada por quem faz tábua rasa da Gramática e da lógica da língua, pretendendo impor a sua verdade, tal dogma indiscutível. Devo confessar-lhe que a sua preocupação, recente no tempo, de se dirigir aos portugueses, referindo “Portugueses e Portuguesas” me causou estupefacção e creia que não me senti mais respeitada por isso.

Saberá que há quem acerrimamente defenda que a par de “camaradas”, se diga também “camarados” e certamente “camarades”, justificando-se a sequência com a dita inclusão. Assim sendo, surgiriam “crianças, crianços e criances” ou “colegas, colegos e colegues” e os exemplos seriam infinitos e a escrita um acto de demência, concordará. E o que fazer ainda no caso de “estudante”, de “presidente” ou de “personagem” ou como resolver o problema dos artigos definidos e indefinidos que se cingem a masculino e feminino? É o tipo de raciocínio chão, da leviandade que caracteriza toda a ignorância, da feroz mania de avaliar, de dissecar, de expor ostensivamente, de inovar por inovar.

Sem dúvida que a atitude miserabilista que tomou conta destas mentes alastrou a situações afins, determinando o clímax acontecido recentemente no Teatro de S. Luís. Uma insanidade, muito aplaudida, apesar de pôr em causa o Teatro, o acto de representar e a saída de cena. Um flagrante elogio da loucura, não concorda, Senhor Presidente?

Quero ainda acreditar que o AO tornará a ser um problema, na sua perspectiva, como aconteceu há uns anos, porque é intolerável o actual desrespeito pela Língua Portuguesa e pela sua ortografia. E porque ficou por satisfazer o pedido do Professor Artur Anselmo, cujo estudo aturado merece o respeito e a admiração de todos nós, porque não agora?

Por último, desejo felicitá-lo pelo seu abraço ao imigrante nepalês, cobardemente espancado, em Olhão, por quem segue os ditames da seita já conhecida. Também aqui será de acompanhar a situação do imigrante nepalês, que, no fundo, representa todos os que procuram trabalho em Portugal (e quanto lhes devemos!…) já que se multiplicam de norte a sul os lobos com pele de cordeiro. O seu abraço, senhor Presidente, não pode ser em vão. Tem de significar alguma coisa no futuro deste nepalês.

[Transcrição integral de artigo, da autoria de Maria do Carmo Vieira,
publicado no jornal “Público” de 11 de Fevereiro de 2023. “Links” (a cor verde) e destaques meus.]
[1] Nome reduzido a iniciais a pedido do próprio.

[O diálogo mencionado no início do texto transcrito está neste extracto (dobrado em Francês), a partir dos 3m:45s.]