O AO90 em números (V1)

«O Brasil cedeu mais do que Portugal no Acordo Ortográfico», diz Evanildo Bechara.

«Contrariamente ao muito que se diz por aí, as alterações que vão ser introduzidas são muito poucas», diz Feytor Pinto.

Pois estão ambos estes senhores a mentir descaradamente, digo eu.

Ou, melhor, não sou eu quem o diz. São os números que o dizem. E os números, ao contrário das pessoas, não mentem: as “alterações” provocadas pelo AO90 são muitas e o Brasil cedeu zero no “Acordo Ortográfico”.

Os sete “posts” reunidos nesta página foram publicados de Abril a Julho de 2017 e não apenas comprovam que é mentira o que dizem aqueles senhores, como demonstram a dimensão das patranhas que bolçam amiúde Bechara, Feytor e outros acordistas de igual desfaçatez.


Os números não mentem – 1

Brasil cedeu mais do que Portugal no Acordo Ortográfico 412017 72705 PM«O responsável pelo vocabulário ortográfico no Brasil, Evanildo Bechara, defendeu hoje que o Brasil fez mais concessões para o novo Acordo Ortográfico do que Portugal, atribuindo a tese contrária defendida por muitos ao “abuso” das consoantes mudas.» [“JN”]

«O Brasil não vai cumprir seja o que for que não lhe interesse. Dizer que o Brasil cedeu alguma coisa é de uma hipocrisia total.»
Artur Anselmo

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Pois está claro, “hipocrisia”, sim, mas na acepção de redonda mentira. O que aliás é natural, vindo de quem vem, já que a incontinência mental e a dissimulação verborreica são características intrínsecas de qualquer mentiroso compulsivo.

Porém, se qualificar patranhas e designar aldrabões — ainda que, polidamente, com adjectivação inócua — é algo meritório, não basta qualificar, há que também quantificar: aquela é mais uma mentira de todo o tamanho, pois, mas de que tamanho é esse “todo”, ao certo?

Vamos a números, então.

Entre Setembro e Outubro de 2008 apurei os primeiros resultados sobre a base-de-dados que na altura se chamava “Mordebe” e cujo “Vocabulário de Mudança” compreendia então um total de 4497 entradas.

Nessa época toda a gente dava palpites sobre o assunto mas ninguém podia dizer (e muito menos comprovar) quais eram os níveis de afectação (infecção) ou de incidência do AO90 sobre o Português-padrão, por um lado, e sobre a variante brasileira, por outro. Ou seja, quantas “palavras” (lemas) mudavam à força, de um lado e do outro do Atlântico, e que percentagens comparativas os dois totais representariam.

Contas à moda do merceeiro da esquina, evidentemente, pois bem sabemos que as palavras não são todas iguais, não têm o mesmo “peso” no uso quotidiano e no registo, nível ou tipo de texto, em que as ocorrências dependem (não apenas em frequência) de inúmeras variáveis.

Mas adiante. Se era números que pretendiam, já em 2008, pois então lá foram esses números, tudo importado página a página para folha-de-cálculo, tudo contado, comparado e analisado com fórmulas específicas (há um programa Excel…ente para análise estatística de texto), até chegar às primeiras respostas.

A começar por esta: em que percentagens “afetou” o AO90 o Português-padrão e a variante brasileira?

Resposta: 1,6% e 0,6%, respectivamente.

Ou 1,5% e 0,5%, claro, porque pode haver oscilações de uma décima para mais ou para menos, dependendo de algumas variáveis, como será o caso do montante total considerado como termo de comparação, isto é, o universo lexical considerado na análise: 90 mil, 100 mil ou, no limite, 230 mil verbetes dicionarizados.

Mas isto foi há quase nove anos. Então e agora, em 2017, como está a coisa? Tudo na mesma, como a lesma, ou não há novidades, como no quartel-general de Abrantes?

Bem, agora, oito anos e meio depois, o dito “Vocabulário de Mudança” inchou, por assim dizer: passou de 4497 para 6621 entradas (lemas).

Fartaram-se de trabalhar, pelos vistos, lá pelo “Portal da Língua”; ao longo de 3060 dias conseguiram desencantar mais 2124 palavrinhas demolidas pelo aleijão. No entanto, mesmo descontando as palavras entretanto integradas no “corpus” linguístico, como no caso das provindas das chamadas “novas tecnologias”, ainda assim as diferenças não bulem com os resultados iniciais.

Uma percentagem é uma percentagem (ou seja, é para alguns um aborrecimento) e portanto a coisa pouco ou nada oscilou neste interim: se à partida o Português-padrão sofreu quase o triplo das alterações que tocaram ao Brasil, agora a situação global mantém-se mas… a dobrar!

Não existe contradição alguma na formulação antecedente: em 2008 concentrei-me apenas nos totais globais, em bruto, enquanto que nesta actualização incluí um parâmetro de análise absolutamente essencial: dos 0,6% que “afetam” a variante brasileira, quantos casos dizem respeito à abolição do trema?

Pois isto é que é mesmo surpreendente: 0,3%!

Metade (0,3%) da afectação total do AO90 sobre a variante brasileira (0,6%) corresponde a palavras em que desaparece aquele sinal de acentuação. O que significa, na prática, que a incidência (a destruição) no Português-padrão afinal não é de quase o triplo, é superior a o quíntuplo, é cinco vezes mais, mudou mais 500% do que a variante brasileira!

Note-se que os brasileiros assinaram e depois denunciaram o AO de 45, no qual a abolição do trema já estava prevista. Portanto, isto não é uma “mudança” imposta pelo AO90, é apenas uma reposição do acordado em 1945. E não pode tal “pormenor” ser invocado como “cedência” da parte brasileira, evidentemente, porque isso mesmo já tinha feito a outra parte 45 anos antes.

E se isto é assim no que respeita ao trema, o que sucederá quanto a outros diacríticos? E no que diz respeito a questões de hifenização, já agora?

De facto, a questão não é apenas que Bechara minta com quantos dentes tem na boca ou que Malaca outro tanto faça amiúde, com igual desfaçatez e ainda que use dentadura postiça integral. Isso já é folclore, por conseguinte, a questão agora será responder finalmente a isto: quantas palavras mudam efectivamente no Brasil, ao certo?

Sempre tivemos a resposta para tão singela pergunta mesmo debaixo de nossos fungantes narizes mas, por algum motivo que em absoluto me escapa, jamais alguém se atreveu a verbalizá-la.

Pois bem, digo eu, que devo ter um apêndice nasal pouco fungante, ele é mais para o fumegante.



Os números não mentem – 2

Devo confessar que tudo isto é “um bocadinho” assustador. A enormidade da mentira, quero dizer.

Recordo-me perfeitamente de que já em 2008, aquando do primeiro trabalho sobre o assunto, sentia de vez em quando um verdadeiro arrepio na espinha, uma sensação estranha, misto de estupefacção e incredulidade: pode lá ser!, aqueles tipos não se atreveriam a mentir assim tanto, caramba, não é possível…

Mas pode ser, sim, como naquela altura me pareceu, a contragosto, e como agora plenamente se confirma, para meu e certamente vosso (grande, enorme, gigantesco) desgosto.

O “acordo ortográfico” de 1990 não passa de uma colossal mentira.

Sem ponta por onde se lhe pegue, ou seja, vendo a coisa por qualquer perspectiva, ângulo, prisma, vector, vertente, tópico ou tema.

No primeiro “post” desta pequena série comparámos alguns números, no que diz respeito ao “Vocabulário de Mudança” e respectivas análises estatísticas, em 2008 e na actualidade. A primeira mentira desmontada, se bem que (para já) apenas referindo os dados essenciais, foi a de que “o Brasil cedeu mais do que Portugal no Acordo Ortográfico”. É falso, evidentemente: o Português-padrão “cedeu” cinco vezes mais do que a variante brasileira… e a seu tempo veremos se terão sido “só” cinco vezes mais.

Que venha a próxima patranha dos acordistas.

“Basta uma meia hora…” ILC contra o Acordo Ortográfico 452017 64850 PM«Contrariamente ao muito que se diz por aí, as alterações que vão ser introduzidas são muito poucas e julgo que basta uma meia hora para os professores aprenderem as novas regras. E depois é aplicá-las.»
Paulo Feytor Pinto, presidente da Associação de Professores de Português (APP), 2 de Setembro de 2009, “Diário Digital” [“post” ILCAO, 29.11.14]

Olha que engraçado. Então, se eram assim tão “poucachinhas” as alterações, para quê… alterá-las?! Se fosse possível “aprender” em “meia hora” todo aquele absurdo, então para que diabo continuam ainda hoje a servir os incontáveis “cursos de formação” sobre aquela porcaria?

Isto no pressuposto (paradoxal, convenhamos) de que é de facto possível aprender alguma coisa sobre coisa nenhuma ou apreender o absurdo ou sequer decorar contradições no meio do cAOs total.

E serão afinal assim tão “poucachinhas” como isso, as alterações?

Ora vejamos.

No trabalho original, em 2008, fui ao ponto de cruzar os dados da “Mordebe” com 100 (cem) textos dos mais diferentes tipos, origens e autores. Utilizei para o efeito uma ferramenta de conversão (o “corretor” que havia na época) e fui anotando as diferenças. A finalidade, inédita ainda hoje em dia, era aferir com um mínimo de fiabilidade qual o impacto relativo do AO90 na escrita “em geral”, isto é, tentando equilibrar as fontes de forma racional (e razoável) para traçar o perfil do leitor “típico” (na Internet): mais notícias e “blogs”, menos textos técnicos, apenas um ou outro conteúdo especializado.

Fixemo-nos apenas nas (então, perspectivadas) diferenças a nível ortográfico: por fim, nada surpreendentemente, verificamos uma taxa de “afectação” global de 1,55%; ou seja, cá está de novo o tal saldo médio de 1,6% — o mesmo valor de incidência que resulta do “Vocabulário de Mudança” sobre o montante global dos verbetes dicionarizados.

1,6% parece afinal “poucachinho”, não parece? Pois parece. Mas não é.

Uma bala na testa perfura bem menos do que 1,6% do corpo humano mas nem com tão baixa percentagem de “afectação” os restantes 98,4% desse corpo conservarão depois do tiro muita saúde.

Aquelas 27 palavras no trabalho de um professor da rede prof2000 são 27 chagas num texto enxuto; são 27 escarros, sem ofensa, metaforicamente falando, atirados por demagogos à face honrada de um honesto pedagogo.

Parece “poucachinho” mas não é, de facto. Mesmo usando exactamente os mesmos “dados” dos acordistas (aldrabados, truncados, retorcidos) e ainda que se utilize apenas a mesmíssima forma de os apresentar, basta contá-los, cruzá-los e extrair dos resultados as mais óbvias conclusões: aquele “poucachinho” representava, em 2008, “só” 1,6% de 93000 entradas dicionarizadas mas isso equivale agora, números actualizados, a 18,3% do “Vocabulário de Mudança” (6621 entradas).

Sabendo nós (agora) que pelo menos metade das “cedências” brasileiras sucederam apenas na acentuação, convém actualizar também esse “cenário”, assim como quem segue à lupa, qual Sherlock Holmes, o rasto de uma trupe de falsários.

Como se vê, afinal, as aldrabices dos acordistas “aprendem-se” em muito menos de meia hora. Não cronometrei mas palpita-me que este “post” lê-se em menos de dez minutos. Outros dez para o anterior.

E mais 10 para o próximo, vá.

Olha! Meia hora no total. Bingo.



Os números não mentem – 3

Chama-se a isto, cientificamente falando, pôr a carne toda no assador.

O que está ali em cima é o quadro de resultados globais obtidos a partir dos cálculos que estão ali em baixo, os quais incidem sobre os dados do “Vocabulário de Mudança” disponibilizados pelo “Portal da Língua Portuguesa”.

Carecem porventura de algum tipo de explicação, tanto os cálculos como os resultados, caso alguém não entenda claramente o que significam, mas seria fastidioso, monótono e quiçá, para o efeito, irrelevante, esmiuçar cada um deles e demonstrar o respectivo algoritmo. Atenhamo-nos, por conseguinte, ao essencial: a folha-de-cálculo em baixo contém as perguntas e o quadro em cima as respostas.

Seguindo esta exacta lógica, traduzamos a frieza dos números para o calor do Português (legítimo) utilizando a mesma técnica, ou seja, transformemos os algoritmos que perguntam e os cálculos que respondem numa sequência simples de perguntas e respostas entre duas pessoas vulgares.

Imaginemos, portanto, que abancam dois bacanos (eu e outro) numa mesa de café e desatam a falar sobre “os números do AO90”. Escusado será dizer que um dos bacanos (o outro) não vê um boi sobre o assunto mas o outro bacano (eu) tem a obrigação, até por dever de ofício, salvo seja, de ver não apenas um boi como uma manada inteira.

E aventa o outro bacano, para início de conversa:

P – Mas o que raio é aquilo?! É para a gente entender ou será preciso tirar um curso?
R – Aquilo é uma análise estatística sobre o “Vocabulário de Mudança”. Os resultados comprovam que o AO90 não passa de uma vigarice colossal. Não é preciso tirar curso algum para entender o conceito de vigarice e, quanto aos números, basta olhar para eles com olhos de ver.
P – Bem, então eu cá devo ser muito cegueta. Já olhei para os números e, confesso, não entendi patavina. Por que ponta se lhes pega?
R – Pela filtragem dos dados de origem: o “Vocabulário de Mudança” contém 6620 entradas mas 2717 delas (41%) têm esta indicação: “na prática, a situação anterior não muda”. Se não mudam, então o que fazem na lista da “mudança”? Primeira aldrabice. Não são “mudança” coisíssima nenhuma, não contam, restam por conseguinte 3903 entradas.
P – Mas se esses 41% de palavras não contam porque afinal não mudam, então para que diabo é que os acordistas as incluíram na lista?
R – Para esconder que omitiram outras que realmente mudam e que são de uso muito mais comum ou frequente. Assim, aldrabando alarvemente a lista de base, podem difundir a patranha de que o AO90 altera “poucachinhas” palavras e que, destas, em quase metade “na prática, a situação anterior não muda”.
P – Ah, está bem. Estão explicadas as 3903 entradas. E daí?
R – A finalidade deste trabalho é apurar se é verdade, ou em que medida seria verdade, que “o Brasil cedeu mais do que Portugal no AO90”. Portanto, sobre as 3903 entradas, de reais “mudanças” listadas, há que determinar quantas palavras (quantos lemas) mudaram efectivamente na variante brasileira e quantas do “português brasileiro” foram integradas à força na “variante portuguesa” (como lhe chamam acordistas).
P – E então?
R – E então, respectivamente, 636 (ou 9,6%) e 1450 (ou 21,9%).
P – Ah, pronto, já entendi: afinal de contas nós tivemos de “importar” mais do dobro de  palavras escritas em “brasileiro” do que os brasileiros palavras com a nossa ortografia. Afinal é o contrário do que dizem os acordistas! É isto, não é?
R – Nim. Sim, porque o que eles dizem é uma mentira descabelada (olha a grande novidade), não porque o embuste não é “só” em dobro. É muito mais do que “só” o dobro: às 636 palavras que, em teoria, os brasileiros tiveram de “importar” do Português “europeu”, há que descontar todas aquelas que já tinham sido objecto do AO de 1945, que nós cumprimos e que o Brasil ignorou olimpicamente: o trema e a acentuação em “éia” e em “éico”.
P – E isso a quanto monta?
R – Isso monta a 587. É só ver no quadro: 321 “ü” mais 174 acentos em “éia” mais 92 acentos em “éico”. Ora, 636 menos 587 dá o quase redondo resto de 49 palavrinhas. O que significa que o “sacrifício” brasileiro desce de 9,6% para… 0,7%.
P – Ah, pois, confere, são esses os resultados do quadro, de facto. Ou seja…
R – Ou seja, não havendo “descontos” nenhuns no Português-padrão (são mesmo palavras impingidas taxativamente da variante brasileira), os nossos 1450 lemas estropiados representam não apenas 21,9% do total (6620) do “Vocabulário de Mudança” mas… quase 3000% de diferença, isto é, de taxa de “cedência”, em termos comparativos.
P – Errrrr… 3000%? Não duas vezes mas trinta vezes mais? Trinta vezes?! Pode lá ser!
R – A variante brasileira “cedeu” em 49 palavras. O Português-padrão cedeu em 1450. Arredonda, pá, se isso te faz confusão: multiplica 50 por 30. Quanto dá?
P – 1500… errrrr… chiça… Então e agora?
R – Agora, bem, por agora é tudo mas isto ainda não acabou.
P – Não acabou? Há mais?
R – Há. Lá iremos.

OA: Ortografia Antiga – PE: Português Europeu – PB: Português do Brasil -ON: Ortografia Nova

Acordo Ortográfico de 1945
XVI – Omissão do acento agudo na terminação eia (ideia, assembleia, epopeia), na terminação eico (epopeico, onomatopeico) e no ditongo oi de algumas palavras cuja pronúncia não é uniforme nos dois países (comboio, dezoito).
XXVII – Supressão total do emprego do trema em palavras portuguesas e aportuguesadas.



Os números não mentem – 4

«Qualquer acordo pressupõe cedências e compromissos de ambas ou de todas as partes envolvidas, o que não é de todo o caso deste.»

A pergunta que nunca alguém sequer se atreveu a fazer: quantas palavras da variante brasileira foram realmente alteradas pelo “acordo ortográfico” de 1990?

Nunca, jamais, em tempo algum foi dada a resposta: está num dos três resultados finais, a vermelho. Pista: não é nenhum dos dois repetidos.

A seguir esmiuçaremos esta verdade a partir de agora insofismável.