DGEBS
ASSUNTO: Acordo ortográfico de Língua Portuguesa
1. > O parecer emitido pelo CNALP merece o acordo genérico da DGEBS.
Aliás, muitos dos pontos nele referidos tinham já constado de anterior parecer elaborado pelo Grupo de Trabalho do Ministério da Educação que, em 1988, se pronunciou sobre o “Anteprojecto”.
2. > No âmbito das competências específicas da DGEBS, são de sublinhar os aspectos referidos no parecer da CNALP que, pela sua relevância e impacto no sistema de ensino, a seguir se enumeram:
◊ a desactualização de muitas espécies bibliográficas:
“0 Acordo Ortográfico será factor de grandes perturbações na circulação do livro em Portugal, porque desactualiza muitas espécies bibliográficas, como os livros escolares, a literatura infantil e juvenil, os dicionários, prontuários e outras obras de referência, além dos clássicos da nossa literatura incluídos nos programas de ensino do português, principalmente nos seus níveis secundário e complementar. 0 Acordo leva ainda à inutilização e consequente destruição de um património constituído por largas centenas de milhar de películas – os fotolitos – em que estão gravadas as composições de muitas obras destinadas a reimpressões.
O Acordo Ortográfico, porque não contemplou sequer prazos compatíveis com a reposição no mercado nacional de espécies bibliográficas em que a exigência de uma ortografia actualizada é imediata, como são os dicionários, pode abrir caminho a uma competição feita em detrimento da qualidade do ensino do português: nomeadamente através da entrada de dicionários publicados no Brasil em que, sob a égide de uma ortografia unificada, se introduzem em Portugal vocábulos sem a menor tradição na nossa língua.
Assim, por exemplo, o maior editor português de dicionários precisará de seis anos para repor no mercado, com a ortografia actualizada, os dicionários que tem presentemente em circulação. Entretanto, a entrada em vigor do Acordo, prevista para 1 de Janeiro de 1994, não permite tal reposição, mas possibilita em contrapartida a entrada em Portugal de dicionários brasileiros com as consequências já referidas.
O Acordo Ortográfico poderá afectar negativamente a cooperação que hoje existe na área do livro escolar entre Portugal e os Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa. Dado que em tais países se segue a norma ortográfica portuguesa toda a produção do livro escolar – à excepção de uma escassa produção doméstica – é exclusivamente assegurada pelos editores portugueses. O Acordo poderá não só deslocar esta produção para o Brasil, como determinar, por arrastamento, a prevalência de docentes brasileiros na cooperação com tais países, no âmbito do ensino.
◊ as consequências perversas do princípio da facultatividade que introduz na língua portuguesa um factor de efeitos perniciosos e contrapoducentes no domínio pedagógico-didáctico:
“… (um aluno do 1º ciclo do ensino básico, por exemplo, que está a fazer aprendizagem da escrita, pode ter um professor que escreve fator e outro que escreve factor).
◊ a exigência de concepção e adopção de um plano, destinado a adaptar a Escola à mudança provocada pela reforma ortográfica e cujos custos são, de momento, inestimáveis mas seguramente altíssimos:
“Assim, os vários elementos do grupo de trabalho foram da opinião de que, depois de conhecido o período de transição estipulado por lei, no momento em que este ou outro acordo venha a ser aprovado, se Vier, a par das estratégias a serem desenvolvidas de modo articulado pelos diferentes órgãos da Comunicação Social para informação da população em geral, deverá ser criado pelo Ministério da Educação um Gabinete para implantação das reformas ortográficas que defina um plano de acção e assegure a respectiva coordenação.
Seja qual for o plano a adoptar, ele terá de ter como prioridade absoluta a reciclagem dos professores de Português de todos os níveis de ensino, em particular, e dos professores de todas as áreas disciplinares, em geral, admitindo–se o recurso a um espaço de emissão na televisão portuguesa.
Da reciclagem especial dos professores de Português deverão constar as estratégias diversificadas a aplicar conforme o nível de ensino em que os alunos terão de iniciar, ou rever, o seu aprendizado das regras ortográficas.
Terá de ser pensada a forma como, durante esse período de transição, irão conviver manuais escolares desactualizados e actualizados do ponto de vista ortográfico. Pelo que se impõe decidir da oportunidade de promover adaptações, correcções, inserção de erratas, corrigendas, e em que âmbito deve esse trabalho ser suportado em custos pelo Estado”.
3. > Tendo a Direcção-Geral solicitado a um especialista seu colaborador, Dr. José Moura, um parecer sobre o actual Projecto, considera-se útil que o capítulo referente à análise e apreciação técnicas do Acordo Ortográfico fique em anexo, para que lhe seja dado o destino considerado conveniente.
DIRECÇÃO-GERAL DO ENSINO BÁSICO E SECUNDÁRIO
Apreciação do “Parecer sobre o ACORDO ORTOGRAFICO DA LINGUA PORTUGUESA”(1990).
Elaborado pelo Coordenador da CNALP, Prof. Doutor Vítor Manuel Aguiar e Silva:
A- Grafia Política
B- Desuniversalização da Ortografia Portuguesa.
A/ GRAFIA POLÍTICA
O “Parecer sobre o ACORDO ORTOGRÁFICO DA LÍNGUA PORTUGUESA”(1990) elaborado pelo Coordenador da CNALP, Prof. Doutor Vítor Manuel de Aguiar e Silva, procura traduzir com isenção e fidelidade a posição daquela entidade sobre uma matéria histórica e altamente controversa.
Dadas as vicissitudes históricas que condicionaram o processo de negociação e o parecer da CNALP, importa reflectir, antes de mais, sobre os fundamentos essenciais que constroem a argumentação usada para a satisfação do pedido de análise e proposta feito por Sua Excelência o Senhor Secretário de Estado, Pedro d’Orey da Cunha.
I. A estratégia “política“ manobrou a negociação sobre a ortografia do português europeu e palopiano com a do português brasileiro.
Assim, Cavaco Silva disse, na tomada de posse dos membros da CNALP:
“Ao reclamar para si um papel que entende relevante na salvaguarda da língua portuguesa, não tem o Governo a veleidade de supor que pode, por si só, dar todos os passos necessários nesse sentido, nem pensar que isso lhe compete exclusivamente. Trata-se antes de obra nacional sujeita a vicissitudes que em larga medida ultrapassam a margem de acção do poder político, e na qual os intelectuais portugueses têm decerto uma palavra autónoma a dizer.“
- Ao Primeiro-Ministro empossador lembrou, na oportunidade, o Prof. Doutor Aguiar e Silva, coordenador da CNALP, que deixou de ser possível impor as políticas da língua “através da autoridade normativa de um escol académico” e que se revelou “inútil, pelo menos em sociedades abertas, fazer aceitá-las por decreto“, além de se ter chegado à conclusão de que “não existe um saber científico que possa constituir o seu suporte e o seu instrumento infalíveis“ (p. 16 do Boletim da CNALP de 1989).
- Cavaco Silva garantiu, sob palavra honrada, que “sempre poderá a Comissão contar com plena abertura ao diálogo – um diálogo pautado por uma tenaz vontade de cumprir Portugal na única (?!) base em que isso se torna possível: espírito de colaboração, frontalidade nas atitudes, vontade de bem servir e atitude face aos desafios“ (p. 13 do citado Boletim).
- O Público de 6 de Maio de 1991, p. 29, entrevista o Professor Aguiar e Silva. Justifica este a sua demissão de Coordenador da CNALP, iludida, nos termos seguintes – e após ter feito lembrar a luz verde dada pelo Primeiro-Ministro, de Roma, por via telefónica, para a assinatura do Acordo Ortográfico de 1990: ”Como Vasco Graça Moura, cheguei à conclusão de que, realmente. o Governo não prestava qualquer atenção ao que dizia a CNALP.” (E pode daqui inferir-se que o mesmo sucedeu ao parecer das instâncias do ME de 1989.)
- Abomina-se, pois, o aproveitamento decorrente da politização de um acto de defesa e divulgação da língua portuguesa.
II. Pela honradez de palavra do Coordenador da CNALP e pelo conhecimento dos factos públicos, fica provado que:
- O texto que o Senhor Secretário da Cultura enviou em 22 de Março de 1990, ao Coordenador da CNALP, não é exactamente o texto que foi assinado naquela data;
- 0 texto que constitui o instrumento diplomático de aprovação do “Acordo Ortográfico“ só foi do conhecimento do Coordenador da CNALP em meados de Janeiro de 1991, quando lhe foi enviado pela Comissão da Assembleia da República, na qualidade de representante do Conselho de Reitores das Universidades Portuguesas.
Tais factos mostram incúria ou má-fé no processo de negociação do Acordo e desrespeito pela função de quem coordena a CNALP – realidade que, no mínimo, equivale a uma atitude e a um comportamento antidemocrático.
III. Apresenta o Coordenador a argumentação de alguns membros favorável ao Acordo Ortográfico, os quais – espantosamente – “não analisam as soluções técnico-linguísticas nele estabelecidas“, se bem que um deles faça referência a algumas imperfeições técnicas que, no entender do mesmo, o Acordo contém (p. 3).
Assim, temos que o Acordo é um instrumento que:
- “Permite a circulação duma escrita uniforme nos sete países da língua portuguesa.”
R.: Ora, convenhamos que se o Acordo tal permite, o facto é que não havê-lo também não inviabiliza essa circulação. E, como ficou escrito no parecer de 29 de Maio de 1989 elaborado pelas instâncias do ME, “um acordo ortográfico só será legitimado quando se verificar a sua radical integração numa política global de língua que permanentemente defenda e difunda de modo científico e coerente” (p. 11).
- “Facilitará a introdução do português em organismos internacionais, bem como o seu ensino no estrangeiro.“
R.: Basta para o efeito que abdiquemos de uma ortografia nacional para a delegar na de outro país, e o assunto fica resolvido. (E, afinal, o País não está em projecção crescente, mesmo sem o Acordo? Não seguem os PALOPS a nossa ortografia?)
Quanto ao ensino, também – e no mínimo das condições – o poder económico, político e cultural e decisivo.
- Decide “uma política de promoção da língua portuguesa“.
R.: Argumento tão ingénuo só é credível se um telhado se mantiver no ar sem qualquer suporte.
- “A ortografia como um sistema gráfico de origem convencional (…) deve adaptar-se às necessidades e conveniências de comunicação da comunidade de povos e pessoas que a utilizam.“
R.: A origem da ortografia é convencionada, não convencional. Línguas há em que ela é motivada (e mesmo científica, no tempo/perspectiva em que letra e número são LOGOS). Mesmo entre nós não é despiciendo grafar Thétis ou Tethvs, Lusíadas ou Lysíadas, para efeitos escatológicos, como se deve ainda considerar Sebastós onde, por vezes, Camões refere Sebastião. Sem dúvida que ela deve (consensualmente) adaptar-se às necessidades, e não impor-se antidemocraticamente, sem que mesmo sirva conveniências de comunicação, as quais teriam mais a ver com aspectos culturais, lexicais, semânticos, sintácticos, morfológicos.
- ”A comunidade lusófona, com cerca de duzentos milhões de pessoas, só ganhará voz no mundo se a ortografia da língua comum for também o mais comum possível.“
R.: Acreditando em número tão elevado de alfabetizados e em que não há necessidade de inscrever na Constituição que o português é a língua oficial, não vai ser o Acordo Ortográfico a condição necessária e suficiente para se dar a voz a uma língua que mais se fala do que se escreve.
Mas é verdade que a ortografia deve ser a mais comum possível, mesmo para os de língua inglesa ou francesa, para não falar dos Chineses e dos Indianos.
(Estarão as obras de Camões, Pessoa, Namora, Saramago, Eugénio de Andrade, Lídia Jorge… em ortografia já actualizada, por esse mundo fora?)
- “Não há razão para que se não adoptam, em Portugal, variantes de grafia oriundas de outros continentes”, pois “o contrário equivaleria a uma inconsciente (sic) e, por isso, não intencional (sic) afirmação de colonialismo (sic).“
R.: Quem tão paternalisticamente assim pensa é estruturalmente um colonialista do pensamento de outrem mascarando o paternalismo e a manipulação argumentativa. Depois, basta lembrar como se não deu voz a quem direito para se pronunciar sobre as bases de tal Acordo de 1990 e relembrar as alterações e substituições que, sem aviso declarado, se introduziram furtivamente no texto do mesmo Acordo. Colonialismo é impor a força económica, o poder tecnológico, os padrões culturais a quem ainda precisa de tempo e ajuda para reagir ao atraso histórico nestes campos.
Adoptem-se em Portugal “variantes de grafia oriundas de outros continentes“, seja de africanos, malaios, japoneses, ingleses… ou dos próprios alunos das nossas escolas – desde que com conta, peso e medida. Mas aceitem-se as variantes para um espaço geográfico definido e sem facultatividades!
Posto isto, não se acha validade e relevância em qualquer dos argumentos aduzidos para a defesa de um acordo como o de 1990. Relembram-se aqui as palavras de outro membro da CNALP: “Há acordos assináveis, sem grandes problemas, e há outros que são de não assinar.
O acordo recentemente assinado tem pontos que merecem séria contestação e é, frequentemente, (…) uma simples consagração de desacordos” (p. 3). E acrescento a transcrição de um passo do parecer das instâncias do ME consultadas em 1989 (pp. 6-7): “Porque o texto do Anteprojecto fere estes princípios, foi parecer de dois dos representantes (Equipa de Elaboração dos Programas de Português no âmbito da Reforma Curricular e Instituto de Inovação Educacional) que, a não ser revisto, o Anteprojecto seja rejeitado.”
Com efeito, e como se prova pelo parecer em anexo sobre o aspecto técnico-científico do Acordo, qualquer dos sete países envolvidos na empresa do entendimento e cooperação merece mais respeito, consideração e salvaguarda dos seus legítimos interesses e aspirações, livrando-os nós de uma monstruosidade que nem a pacificação promete nem consegue a unidade e o consenso.
Por isso se dispensa qualquer comentário aos argumentos que com pertinência, rigor e lucidez o Coordenador da CNALP apresenta contra o Acordo de 1999: basta reler a limpidez do texto.
IV. Outros aspectos há ainda a considerar nomeadamente os que implicam razões de carácter editorial, cultural e educacional.
1. Em síntese, este Acordo equivale a milhões de contos e inúmeras obras do património cultural atirados ao lixo.
Ora, não vale a pena – de jeito nenhum – desactualizar manuais escolares, dicionários, prontuários, formulários, excertos literários, gramáticas, textos não literários, legendas de filmes…
2. Também o esforço de quem alfabetizou e foi alfabetizado – num panorama felizmente mais positivo daquele em que outros acordos abortados ocorreram – coloca novo problema de consciência, sobretudo tratando-se de leitores e escreventes de graus mais elementares.
3. A quem interessa numa reforma radical ortográfica, nem pacífica nem símplificadora, que não remove quaisquer obstáculos à comunicação entre Portugueses e Brasileiros, com divergências de semântica, sintaxe e prolação insuperadas?
Por que razão se não pensa, por exemplo e para já, em solucionar ao menos internamente, o uso do hífen, o qual pode abranger não três longas bases mas o texto de uma simples página? Ou formular outras regras para mais fácil memorização de homófonas e do emprego das maiúsculas sem recurso permanente ao prontuário.
4. Como obviar ao caos e à erosão pedagógico- -didáctica e burocrática? Será suficiente e oportuna (mais) uma reciclagem de professores e alunos? Terão os cidadãos disponibilidade e disposição (alguns reprovaram e foram profissionalmente penalizados pela ortografia) para se disporem a reaprender o bê-á-bá?
5. Que gabinete foi entretanto criado para a implantação ortográfica? Que medidas consistentes estão sendo tomadas para uma política realista que torne língua portuguesa uma língua de cultura de ponta?
Que estratégias eficazes e prazos Viáveis hão-de reconstruir o que tão arbitrariamente se está babilonizando e abrindo caminho à legitimação de divergências dentro de cada país e entre os sete, afastando-nos cada vez mais das raízes culturais europeias ou, pelo menos, românicas?
6. Quem nos descoloniza das facultatividades, das pronúncias “cultas“, da “norma-padrão”, dos dicionários “autorizados“, da legislação “excepcional“…?
7. Reconhece-se hoje que a língua portuguesa é falada (infelizmente, não escrita) pelos tais duzentos milhões – estudada (com ou sem acordo) por inúmeros estrangeiros, nas suas variedades e realizações culturais, estruturas lexicais morfológicas, ortográficas, semânticas, sintácticas, ao longo da sua história; Reconhece-se hoje a língua portuguesa como factor de coesão regional, nacional, supranacional, pluricontinental e fautora da paz e do entendimento entre povos;
Reconhece-se hoje a língua portuguesa como chave para um humanismo e um pensamento que esclarecem o legado do Homem e prospectivam o futuro desde o Ocidente da Europa;
E por isso – com a mesma naturalidade – aqui se lembra o receio, formulado já no parecer das instâncias do ME, em 29 de Maio de 1989, de que “em Portugal as medidas pela defesa da Língua se confinam à assinatura do protocolo do referido acordo, o que, sem mais nada, significaria na prática, a consolidação da vertente brasileira em detrimento da vertente lusitana, pelo que o acto de defesa de um acordo supranacional acabaria por se transformar numa prática antinacional”(p. 4).
Lisboa, 1 de Junho de 1991
José de Almeida Moura
[Transcrição do parecer manuscrito do Dr. José de Almeida Moura]
B/ Desuniversalização da Ortografia Portuguesa
Base I
- Afirma o ponto 1.º que o alfabeto português / “da língua portuguesa é formado por vinte e seis letras”. Já em 1945 o era, com restrições no uso, no entanto, que o Acordo 90 conserva, pois
“Nenhuma vantajem há em complicar a escrita com os símbolos k e w, que nunca foram portugueses no emprego que hoje se lhes dá. Quanto ao y com 0 valor que se lhe atribui em castelhano, e em português se lhes deu, e ainda esporádicamente e sem coerência aparece em Vários vocábulos (Arroyos, Foya, alfayate), o i substitui-o perfeitamente, e seria absurdo resuscitar o y em todos os vocábulos em que a congruência o exijiria e de que o uso o desterrou. Com efeito, quem escreve Arroyos deve escrever joyo, moyo; consequência da escrita Foya é joya, loyos, e de y em Alfayates, mayo, saya, sayote, etc.” (A. Gonçalves Vianna, As Orthographias Portuguesas, Lisboa, Typographia da Academia, 1902, p. 9).
- Continua no entanto, a não se entender por que razão aparece grafado, por exemplo, Kuwait / Kuwaitiano no Acordo 90, quando no Acordo 88 tínhamos Kweit / Kweitiano e no Acordo 86 Kwait / Kwaitiano.
E na base em questão, ponto 6.º, continua a recomendar-se que “os topónimos de línguas estrangeiras se substituam tanto quanto possível por formas vernáculas (. . .) quando entrem, ou possam entrar no uso corrente”.
- Contra O disposto na Nomenclatura Gramatical Portuguesa e nos acordos de 86 e 88, o Acordo 90 acrescenta a designação de cá ao capa e substitui duplovê por dáblio (do inglês).
Como justificar a designação dupla de apenas três letras, se podia fazê-lo em relação a muitas outras, como, por exemplo, efe / fê, erre / rê, eme / mê…
Porém, na observação 2 ao ponto 1.º consagra-se, antes, a enormidade de permitir que “os nomes das letras acima sugeridos (sic) [e elas são 26!] não excluem outras formas de as designar” – facto que legitima a quem quer que seja, mesmo na sala de aula, chamar beta ou bota ao bê, lâmbda ou lambada ao ele, guímel ou gama ao gê, psi ao pé…!
- Mantém uma falta de coragem, por outro lado, em se reconhecer que há grafemas em palavras aportuguesadas sem leitura clara e unívoca para o comum dos mortais: shakespeariano, múlleriano, freudiano, byroniano, Wõlffliniano… (E note-se que o trema é definido como sinal de diérese na Base XIV!)
- Que legitimidade existe para de Fuchs derivar fúcsia e fúchsia, grafar buganvília / buganvílea / bougainvíllea (I, 3.º), se um dos princípios de qualquer acordo ortográfico é simplificar e uniformizar, além de se ter rejeitado em 2.º, k – quilovátio / quilovate (formas vernáculas) / quilowatt (Aurélio) quando ali mesmo se consagra yd – jarda (yard)?
Base II
- Afirma-se em 1.º b, como no Acordo 45, que o agá inicial se usa em Virtude de adopção convencional (hã, hem?, hum?) mas lemos no mesmo II, 4.º (e apenas) do Acordo 90 que o agá final se emprega em interjeições (“ah oh”, sic).
Ora a interjeição de chamamento ó não não leva qualquer agá nem hã?, hem ?, hum! deixam de ser interjeições!
- A propósito de na mesma base II, 2.ºb e 3.º se falar de composição àquilo que é derivação por prefixação (portaria 22664, de 28 de Abril de 1967, incluída na NGP), aqui se lembra que o erro é constante em todo o texto do Acordo 90.
Base III
- A homofonia – um quebra-cabeças de todo o estudante (e de quaisquer escreventes) – ficou intocada também no Acordo 90. Terá sido por “clareza gráfica”, como se argumenta quando convém (Base XX, 6.º)? Contudo, e por exemplo – já se disse Férrio (e escreveu), dizemos / escrevemos hodierno e hoje (< hodie), laje / laja / lajem / lájea (sem etimologia convincente, mas preferível lage para R. Gonçalves, p. 1110 do seu Vocabulário, de 1966), o –is de Luís (< wig / vig) e o –iz de feliz (< –ice) não perderiam por uma identificação gráfica, como sucede aos grupos pl– / fl– / cl– que resultaram num ch-. Podíamos continuar a reflexão com exemplos do tipo de maior / major / majestade, justapor (de iuxta-) ou jerarquia / hierarquia, Jerusalém e hierosolimita.
- Distracção ocorre no ponto 2.º ao acentuar-se jibóia, quando se grafa jiboia em tempo de vindima dos acentos gráficos na Base IX, 3.º.
- Ainda um reparo ao ponto 6.º: Luso, topónimo (talvez de origem) e mitónimo, hoje também tem uso de antropónimo e de etónimo.
Base IV
- Simples de fixar, mais diacrítico, etimologicamente coerente, menos homofonizante é O critério de manter as consoantes etimológicas, articuladas ou não. Assim, egípcio e Egipto, actuação e actuar (diferente de atuar ‘tutear’), auto e acto, óptimo, optimizar e Optimates, cataléctico e cataléptico, aspecto, respeito e expectativa, óptico e ótico…
(A propósito, em que ficamos hoje: díctico (cf. paradigma, dicção…), deíctico, dêictico, déitico…?
- Cabem aqui algumas reflexões apropositadas:
2.1. Que é e quem define a tal (ou tais) pronúncia(s) culta(s)? E até que período e em que espaço geográfico vigorará tal abantesma? Quem “autoriza” os tais dicionários e outros processos de controlo imprevistos, remotos e imprevisíveis?
2.2. Importa eliminar – para cada espaço cultural e geográfico – a dupla grafia, a grafia facultativa, mais do que fixar(em)-se o(s) caso(s) em que tal fonema se articula ou não cá e lá ou se articula às vezes lá e cá ou só cá ou só lá. ..
2.3. Não tem qualquer cabimento legislar nesta matéria ortográfica de modo facultativo – numa ”língua padrão” (sic), como se lembra em VII, 3.a – pois a confusão é já muita em Várias bases do Acordo 90. Veja-se, de resto, o que se escreveu na parte primeira das Conclusões Complementares do acordo de 1931, em cujo ponto III se lê: “Não se consentem grafias [. . .] facultativas [. . .]”.
2.4. Também o ponto 4 do grupo VI das mesmas Conclusões assinadas em 10/VIII/1945 aponta para o respeito em que se devem ter as consoantes mudas quando “aparecem em palavras ou flexões afins que devam harmonizar-se graficamente com palavras ou flexões afins em que essas consoantes se mantenham”. Doutrina, aliás, mantida na Base VI, 4.º do Acordo 45.
Base V
- Aqui, apenas fica a interrogação de se as tais pronúncias “cultas” continuarão a permitir variações do género de cúmio (popular), de cume, réstia, do antigo reste, em 2.º d., ou a forma dialectal sã-braseiro (Base VI, 1.º)… e outras formas congéneres.
Base VII
- Afinal, não há só contração (XII, 1.º a) e contracção (IX, 10), mas também combinação (VII, 1.ª Obs.) da preposição a com as formas masculinas do artigo [definido] ou [o] pronome demostrativo o, ou seja, ao e aos! (Note-se que o informante metatextual inciso ou sejam de XX, 1.º é incorrecto.)
- E quanto às 3.ªs ou 2.ªs pessoas do plural, elas nunca existiram, ao contrário do que se faz crer em todo o texto do Acordo 90 (cf. IX, 5. c, VII, 2. a, 3. b ii …)
- Também é errado afirmar-se em 3.º b que o ditongo am é sempre átono e só se emprega em flexões verbais. Basta lembrarmo-nos de bamba e grampo, também…
Base IX
- Para um estudante (e muitos professores) saber que as paroxítonas hóquei, órgão, contraríeis, Vénus (2.º b), fórum, cânon, plâncton, bênção (5.º a e b) levam acento gráfico agudo ou grave não é matéria difícil: O problema surge quando creem (de crê), leem (de lê), veem, (de vê), no ponto 7.º, já o perderam, só pelo “hiato” em que o e se encontra com o ditongo! E em néon ou em Actéon não há hiato, embora com acento agudo na tónica.
- Entretanto, em 6.º b faculta-se o acento para dêmos e demos, fôrma e forma, e o ponto 9.º empurra para o contexto pela / pela / pela, para / para, polo / polo (”combinação antiga e popular.”) Que sistematização!
Base XII
- “Levar acento”, “assinalar-se com acento”, “receber acento”, “acentuar-se” – de tudo se lê no texto do Acordo 90.
Mas o ponto 1.º a refere que se emprega o acento grave “na contração (sic) da preposição a com as formas femininas do artigo [definido] ou o pronome demonstrativo [gralhado em IX, 10] o (sic): à (a + a), às (a + as).” Não é para entender, com certeza.
- Como não é para entender que continuem a não ser consideradas as contracções prò(s) e prà(s), de pra + o / a / os / as.
Base XIII
- A redacção do ponto 1.º ficaria correcta se se tivesse admitido que os advérbios em -mente também podem derivar de outros advérbios, e não apenas de adjectivos: “Ali, estava ela somente”.
Por conseguinte, é incorrecta a inclusão de somente na linha 4 desse ponto 1, cuja redacção, aliás devia iniciar-se por “Nos advérbios em -mente que derivam de formas adjectivas e de adjectivos de valor adverbial (…)”, para abranger ainda casos do tipo de latine loqui / lusitane l.
- Incorrecta se manifesta confundir os sufixos -inho / -ito com –zinho / -zito, pois estas formas sufixas incluem um Z eufónico que se designa de infixo: pessegozito / pessogozinho / pesseguinho / pesseguito, ilheuzito / ilheuito / ilheuinho…
Base XV
- Aqui começa o calvário das três bases dedicadas a complexificar O uso do hífen, sobretudo para quem não traz biblioteca no lombo. No entanto, parece-me sensato O disposto em XV, 3.º e XVI, 1.º a e b e 2.º.
- Na inexactidão do que se entende por palavras compostas, o ponto 1.º identifica, desta vez, correctamente o conceito, embora O defina erradamente: a justaposição não é “uma unidade sintagmática e semântica”, porque qualquer palavra ou frase o são. Exige-se, de facto, o acento próprio para cada elemento vocabular, mas também importa a unidade morfossemântica ou lexicossemântica: ano-luz é diferente de Hoje choveu.
- Mas se a ligação dos elementos exige a natureza nomimal, adjectival, numeral e verbal do ponto 1.º, ela deve incluir também a pronominal, a adverbial e a preposicional: Todos-os-Santos, Trás-os-Montes, Todo-Poderoso não são palavras justapostas?
- A observação feita ao ponto 1.º baralha: então mandachuva e paraquedas não entram em casos como o de guarda-chuva e conta-gotas? E ter-se-á perdido de facto a noção de composição (mesmo ”em certa medida”, sic), como se pretende fazer crer?
- Espantoso: alcunhar Camões de Trinca-Fortes equivale a toponomizá-lo, na doutrina do ponto 2.º! E o mesmo se diga para algum Mata-Mouros ou algum mais antropófago Traga-Mouros…!
- Endereçar carta à Baía de Todos-os-Santos exige mais tinta e dispêndio de tempo: primeiro, porque se deve usar o bê maiúsculo (rua / Rua é grafia facultativa, em XIX, 2.º i); depois, porque a festividade de Todos os Santos rejeita o hífen (XIX, 2.º e).
- O ponto 4.º continua a enfermar de incoerência geral do emprego do hífen. Podia ter-se pensado com mais trabalho e sensatez, de modo a obter-se a desejada e pedagógica simplificação.
- Depois, para quê relembrar o cor-de-rosa, ante o cor de vinho e o cor de açafrão, “formas consagradas pelo uso”. (Mas de quem?)
Base XVI
(…e de novo para simplificar o uso do hífen!)
- Que pedagogia e rigor científico há na redacção da observação feita ao ponto 1.º b: “Nas formações com o prefixo co-, este aglutina-se em geral (sic) com (…)”?
- O disposto em 1.º d está em contradição com o 2.º a, e facilitaria a divisão silábica. Assim, porquê hiper-requintado e extrarregular, contrarregra e super-revista?
- Apenas um reparo: biorritmo (2.º a) não estará na situação técnica e científica de primo-infecção (XV, 1.º), sem que fique contraditado o ponto XVI, 1.º b?
- A redacção de XVI, 1.º f é incorrecta, porque as formas átonas de pró- e pré- já Vêm prefixadas do latim, enquanto as tónicas se grafam por hífen por razões semânticas, a fim de se marcar desse modo um ponto temporal em noção recentemente criada para referências do tipo de pré-pagamento, pós-graduação (cf. prever e pospor).
O caso de pró- que aparece prefixado em formas já derivadas do latim (promover, providência) grafa-se com hífen apenas quando significa ‘a favor de’: pró- africano.
O caso de pré-escolar está consagrado pela regra de XVI, 1.º b. Mas não levem ao exagero de escrever pós-tónico e pré-tónico (em vários passos: cf. XI, 1.º b e 2.º b), quando em Portugal e no Brasil já se escrevem postónico e pretónico.
Base XVII
- Esta terceira base para a simplificação do uso do hífen é, no mínimo, castiça, ao eliminá-lo em hão de, mesmo em frase absoluta, e não em hão-no.
- Dizem Cunha e Cintra (p. 547) e a NGB que eis não é um advérbio, mas “palavra denotativa de designação”. Ou talvez seja um simples díctico, daqueles que reforçam morfologicamente certos pronomes já em latim e um nome, uma frase… Como é advérbio o eis de “Eis o Homem ou de “Eis-nos chegados à Baixa!”?
Base XX
1. Na linha 5 desta base, que justifica a divisão silábica de hi-pe-ra-cú-sti-co? (Nova gralha, com certeza…)
2.1. Sejamos simples e práticos, isto é, soletremos bem, mas não confundamos com translineação a soletração, pois a translineação tem efeito Visual e correspondências etimológicas:
- ab-le-ga-ção e ab-legue, mas a-blu-ção, quando o prefixo é o mesmo?
- ad-li-gar e ad-ligar, mas a-pli-car, ou
- sub-lu-nar e sub-lunar, mas su-pli-car, quando os prefixos são os mesmos?
Tal procedimento não facilita a aprendizagem na escola.
2.2. Em 2.º e 3.º, porquê íp-si-lon, se psi-lo-se, Terp-sí-co-re, se psi-quis-mo, disp-nei-a, se pneu-má-ti-co?
2.3. A redacção do ponto 5.º peca por falta de rigor e de síntese, pois unifica dois casos díspares com o mesmo efeito na grafia.
De qualquer modo, é um ponto da base ocioso, porque já ficara consagrado no ponto anterior, onde se diz: ”se a primeira delas não é u precedido de g ou q”.
3.Mas, por outro lado, veja-se como se complicam casos simples: áre-as, do ponto 4.º, confirma que á-gua é igualmente uma proparoxítona real, e não a proparoxítona aparente ou falsa, como se pretende fazer crer na Base XVI, 1.º b e 3.º, com a exemplificação de álea, náusea, ténue, fêmea, génio…
Base XIX
1. Com a redacção desta base o caos fica completo no sistema ortográfico do Acordo 90, violenta-se a NGP, complica-se O esforço de sistematização, esfuma-se o conceito gramatical de nome próprio, prolifera a polissemia (cf. R. Gonçalves, Tratado, p. 301).
Assim, só há doze meses no ano e quatro estações, entre nós; mas nem por isso têm direito a nomes próprios grafados com maiúscula (1.º b). Ao contrário o nome de uma instituição escreve-se só com maiúscula (2.º d), contrariando O princípio disposto em 1.º g, para o nome de cursos ou de disciplinas académicas. E lembre-se que “a estudar matemática” não é sinónimo de ”passar a Matemática” ou “estudar línguas e literaturas modernas ou clássicas” não significa algo equivalente a ser aluno de / andar em ”Línguas e Literaturas Modernas”.
2. Podem escrever-se com minúscula os títulos de livros, mas não o dos periódicos (cf. 1% e 2.ºf).
3. Usa-se Fulano, em XVIII, 1.º c, mas restringe-se-lhe a semântica em 1.º b, onde só pode ser escrito com minúscula, apesar de, aqui o repito, D. Dinis satirizar um D. Fuão.
4.1. Confunde-se, sistematicamente, o caso do tratamento axiónimo em “senhor doutor J. Silva” com a puramente referencial designação de “bacharel M. Abrantes” ou “o cardeal Bembo” – aqui, nomes comuns do tipo cidade Roma.
4.2. Não se contempla o que Hamlet deseja tratar por “Excelentíssimo Senhor Qualquer-Coisa”, mas V. Exa escreve-se com maiúscula (ponto 2.º h) enquanto “vossa excelência” se fica na minúscula. Se for hagiónimo (o Céu nos valhal), podemos grafar santa / Santa… (1.º f).
5. Segundo os dicionários (ainda não autorizados, claro) fictício não é sinónimo de ficcional, por contraposição a real, como fica dito ou confundido em 2.º a e b.
Depois, D. Quixote existe como antropónimo ficcional, enquanto a Hespéria ou a Atlântida são topónimos históricos, embora em discussão de prova.
6. Todos os Santos, em 2.º e., sem hífen, vem complicar O disposto para o topónimo em XV, 2.º.
7. Adamastor não é um nome antropomorfizado mas tão mitológico como o próprio Neptuno, embora de invenção (quase só) nacional! Se fosse o Tejo quem ninfasse, a prosopopeia era outra…
8. Por amor de Deus, retirem o sorvedouro marítimo da observação final da Base XIX, por castradora, imprevisível, prepotente, petulante e ridícula!
9. E digam antes o que foi feito dos etrónimos e dos astrónimos, por exemplo.
Lisboa, 1 de Junho de 1991
José de Almeida Moura