Basicamente, este curioso textículo baseia-se na comovente história de um rapazinho chamado Moacir, que é aliás um nome tipicamente “indígena”, vê-se logo, pois claro, Moacir não tem nada de nada a ver com seu Mánuéu Padeiro, Moacir é que é Tupi, é Guarani, é Guajajara, é tudo ao molho e fé em Sumé (deus das leis, deve ser licenciado em Direito, ou assim). Em sumé, digo, em suma, Moacir é que o verdadeiro… hum… coiso, e tal nomezinho não tem nem raspas de “colonialismo” brasileiro.
Então, diz a Cristina (muito prazer, minha senhora, queira fazer a fineza de relevar qualquer coisinha, ou isso, sabe, são feitios) que o tal puto Moacir, coitadinho, em sua pagã inocência profere umas palavrinhas que, parece, diz a Cristina, é pecado dizer: «“Olá, o meu nome é Moacir e hoje foi um dia de festa na minha aldeia.”»
Passa-se a deprimente cena, relata Cristina, em frente a um painel de parede que, devo confessar, absolutamente ignoro, aliás pela muito ignorante razão de não pescar patavina em matéria de telas: «Seria cómico se não fosse trágico, pois no pano de fundo temos a chegada das naus e navegadores portugueses às terras que viriam a ser o Brasil.»
Ah, pronto, cá está de novo a rapsódia do “colonialismo” dos portugueses, esses malvados que têm de pagar caro — e até ao fim dos tempos, se não mais — pela insuportável pesporrência de terem “colonizado” o 5.º maior país do mundo, o qual, de resto, até já existia antes da chegada dos ditos malvados. É que, segundo reza a Cristina, naqueles virginais e impolutos 8.510.345 Km² não há absolutamente violência alguma, tal coisa jamais existiu, o Brasil nem é um dos países mais violentos do mundo nem nada, fomos e somos nós que malignamente pecámos e pecamos ocultando a «violência da colonização portuguesa do Brasil». E não podia faltar à historinha, pois claro, o infalível, omnipresente “argumento” — que a Cristina põe na boca da criancinha — do ouro que os “cara” da “terrinha” foram lá “roubar”: «“Mostraram-se muito interessados no nosso ouro e prata”».
Ao fim e ao cabo, e de fio a pavio, este espantoso manifesto lusofóbico — sem nada de racista, note-se, ou, bem, quase nada — serve apenas o propósito de matraquear as meninges de quem por azar tropeçar naquilo, usando para o efeito os ingredientes do costume, isto é, a mentira e o descaramento. Expressões como «violência infligida aos povos indígenas» e patacoadas que tais são, literalmente e salvo seja, aos pontapés.
A bem dizer, tão pretensamente radical discurso adequar-se-ia talvez a outro filme, com outros realizador, encenador, actores e cenário. Por exemplo, o “Apocalypse Now“. Cristina seria nesse caso a argumentista, pois com certeza. Só teria de se dar à maçada de trocar o Vietname por Mato Grosso, os tanques americanos pelas caravelas portuguesas, o napalm pela «transmissão de doenças», os vietcong pelos Kayapó, o coronel Kilgore por um “coroné” tuga e, portanto, Robert Duvall por… enfim, sei lá bem, talvez Ricardo Pereira, que é fluente em brasileiro.
Quanto ao argumento propriamente dito, cara “igualitária”, serve este mesmo, o do seu artigalho, que até começa logo por uma boa piada no título.
Porto Editora, descolonize-se
Cristina Roldão
Passado cerca de um ano do artigo “‘Descobrindo’ o Manual Colonial”, volto ao assunto, desta vez para falar sobre como as representações dos povos originários do Brasil nos manuais escolares são sintomáticos da profunda colonialidade que ainda estrutura o imaginário colectivo. A páginas tantas, no manual ‘HGP em Acção‘, 5.º ano, da Porto Editora — o mais utilizado neste ano lectivo (328 escolas, 28% dos estabelecimentos que oferecem esse ano escolar) –, temos uma colorida ilustração que, em primeiro plano, apresenta uma criança indígena que se dirige sorridente ao leitor dizendo num balão de fala: “Olá, o meu nome é Moacir e hoje foi um dia de festa na minha aldeia.”
Seria cómico se não fosse trágico, pois no pano de fundo temos a chegada das naus e navegadores portugueses às terras que viriam a ser o Brasil. Festa? Mas quem é que tem a ideia peregrina de chamar àquilo uma “festa”? É verdade que, mais adiante, Moacir refere sobre aqueles homens: “Mostraram-se muito interessados no nosso ouro e prata”. Mas não se levanta o véu sob a violência infligida aos povos indígenas. É preciso dizer que, se esta imagem se destaca pelas doses cavalares de romantização da violência colonial, noutros manuais é também comum, por um lado, a omissão da história dos povos originários do Brasil e da sua resistência e, por outro, a minimização da violência da colonização portuguesa do Brasil.
Se eu tivesse de indicar a forma mais comum de estes pilares do eurocentrismo acontecerem seria, sem dúvida, a utilização sistemática da palavra “descobrimentos” para referir a colonização. Essa é uma constatação a que chego todos os anos quando analiso o eurocentrismo nos manuais de História com as e os estudantes.
Noutro lugar, o mesmo manual da Porto Editora exibe uma fotografia contemporânea de duas crianças indígenas. Na legenda diz-se o seguinte: “Ainda existem comunidades de índios no Brasil, hoje em dia.” Ensina-se, assim, implicitamente, uma escala da humanidade que vai dos pretensamente primitivos (eles) aos civilizados (nós, portanto) e, como bem assinalou uma aluna minha numa das discussões que tivemos em aula, dá a entender que eles, sendo supostamente de outro tempo, já não deveriam existir, é quase como se aguardássemos, com naturalidade, a sua morte e extinção.
Sabe-se que a chegada dos europeus representou o quase extermínio dos povos originários do Brasil, através de conflitos armados, da transmissão de doenças, da escravatura e da apropriação dos seus meios de vida. De cinco milhões estimados para o século XVI, o Brasil chega ao século XXI com cerca de meio milhão de pessoas indígenas. O genocídio foi também feito através da cristianização, com o que ela significou de destruição de culturas e identidade, desaparecimento de línguas e de formas de ver o mundo. A chamada “vocação histórica” para a interculturalidade dos portugueses levou a que de cerca de mil línguas indígenas inicialmente existentes restem perto de 200.
[legenda de foto] “Ainda existem comunidades de índios no Brasil,
hoje em dia”, lê-se no manual escolarA imagem de Moacir, a fotografia referida, assim como as figuras de duas crianças indígenas junto ao padre António Vieira, na estátua que lhe erigiram em Lisboa, são um espectro do racismo estrutural e um invólucro de docilidade com que escondemos as nossas vergonhas coloniais. Não representam os povos originários do Brasil, não nos dizem nada sobre as múltiplas lutas que travaram contra a conquista dos portugueses, nem mesmo nos oferecem retratos das lideranças antigas e actuais, da sua resistência.
Até quando irá a Porto Editora veícular estas imagens e silenciamentos? Até quando o Ministério da Educação e as autoridades competentes que tanto alarde fazem da interculturalidade e a lusofonia se absterão de fazer as mudanças que têm de ser feitas?
‘Agradeço às e aos estudantes da licenciatura de Educação Básica da ESE-IPS cujas análises dos manuais contribuíram para esta reflexão.’
Cristina Roldão
Professora ESE-IPS o investiga CIES-IU
[Transcrição integral de artigo publicado no jornal “Público” (edição em papel) de 02.03.23. Destaques,
“Links” e sublinhados meus. Corrigi manualmente a cacografia brasileira do original.
Imagem da estátua do Padre António Vieira vandalizada de: semanário “Sol”.]