Cândido, Pangloss, Voltaire (e vice-versa)

Resolução do Conselho de Ministros n.º 8/2011

Determina a aplicação do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa no sistema educativo no ano lectivo de 2011-2012 e, a partir de 1 de Janeiro de 2012, ao Governo e a todos os serviços, organismos e entidades na dependência do Governo, bem como à publicação do Diário da República

O Acordo do Segundo Protocolo Modificativo do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, aprovado pela Resolução da Assembleia da República n.º 35/2008 e ratificado pelo Decreto do Presidente da República n.º 52/2008, ambos de 29 de Julho, determinou uma nova forma de entrada em vigor do Acordo Ortográfico com o depósito do terceiro instrumento de ratificação. Assim, e nos termos do Aviso n.º 255/2010, de 13 de Setembro, publicado no Diário da República, 1.ª série, de 17 de Setembro de 2010, o Acordo Ortográfico já se encontra em vigor na ordem jurídica interna desde 13 de Maio de 2009.

Pelo menos os maiores de 30 anos ainda devem recordar-se de Muhammad Saeed al-Sahhaf, o Ministro da Informação (ou seja, da Propaganda) de Saddam Hussein, garantindo firmemente que estava tudo em paz no Iraque, que não se passava nada no país e que nem havia nada de especial em Bagdad para ver, à excepção, talvez, dos minaretes e do palácio do Presidente. Enquanto aquele espantoso cromo falava, em directo, através das maiores cadeias televisivas do mundo, rebentavam mísseis por todo o lado, os disparos da artilharia americana eram claramente audíveis, os tanques de cavalaria cercavam já o dito palácio (Hussein mudou-se temporariamente para um colector de esgotos) e a própria infantaria dos “aliados” andava a bater todas as ruas — e a arrombar umas quantas portas — da capital iraquiana.

Salvas as devidas, enormes, gigantescas distâncias, aquelas imagens célebres fazem lembrar a atitude que vão adoptando algumas figurinhas da nossa praça dita “académica” (bem menor do que o número de peixeiras do mercado de Tikrit, aposto) que persistem na “garantia” de que também quanto à Língua Portuguesa “no pasa nada”; como no Iraque em 2003, também em Portugal de 2023 está tudo na mais santa paz, não há cá bombas nem blindados nem “acordos” leoninos, as nossas crianças — e a população em geral — não estão a ser sujeitos a lavagem cerebral nenhuma, o nosso património histórico intangível não está a ser metodicamente demolido, a nossa identidade enquanto povo, a nossa Cultura e a sua coluna vertebral, a Língua Portuguesa, não estão em pleno processo de extermínio nem nada. Estão lá agora, diz quem impinge peixe estragado e dizem os outros vendilhões. E tanto não se passa nada que até o AO90 não está em vigor, vejam lá!

Isto ele aplica-se ao caso a lapidar expressão de Pangloss porque, exceptuando apenas alguns mais “reaccionários” e “preconceituosos” e “xenófobos”, de resto tudo corre pelo melhor, a CPLB é uma maravilha, a língua univérsau uma ideia gêniau, a terrinha ainda há-de fazer parte de um império outra vez.

Quanto mais não seja para esses assim mais indefectíveis da “causa” imperialista, mas também para os “distraídos” e aqueles — a imensa maioria — que ou não querem saber de mais nada além de bola e tremoços ou não se atrevem a sequer soerguer uma sobrancelha, convirá portanto irem desde já arrumando seus trastes mentais e preparando o futuro: foram brasileiros (e alguns traidores portugueses) a impor o AO90, portanto agora serão igualmente brasileiros a mudar na língua brasileira — ou seja, ná tau língua univérsau — aquilo que lhes der na real gana e sempre que lhes apetecer.

Como esta jigajoga da “linguagem neutra” ou “inclusiva” ou lá como eles chamam àquilo. O que for doravante determinado pelo Brasil, por instituições brasileiras, pelo Governo brasileiro, passa automaticamente a valer em todos os estados, a começar pelo 28.º Estado. Eles dizem-no clara e expressamente, por exemplo no arrazoado seguidamente transcrito: «apenas a União pode alterar as regras da Língua Portuguesa».

Se foi assim com o AO90 e daí em diante, porque raio agora iria ser diferente?

Ordem do Cruzeiro do Sul

Editorial

Copo meio cheio e copo meio vazio

A decisão do STF, neste momento, não prejudica o debate sobre o tema, só define que apenas a União pode alterar as regras da Língua Portuguesa

 

Algumas notícias precisam ser lidas da forma como elas são, principalmente quando derivam de uma decisão judicial. Não se pode extrapolar o que diz a sentença para o mundo geral, para o dia a dia e nem se concluir que, se uma coisa não pode, a outra passa a ser liberada. É preciso se ater ao que foi escrito.

Um tema muito controverso na atualidade é o uso da linguagem neutra. O assunto gera debates acalorados nos mais diversos círculos da sociedade. Argumentos pró e contra surgem aos borbotões. E, no fundo, no fundo, quase sempre todos são justificáveis conforme o prisma que se olhe.

O assunto voltou com força à tona sexta sexta-feira (10), por conta de uma decisão tomada pelos ministros do Supremo Tribunal Federal. No julgamento em questão, o STF derrubou uma lei de Rondônia que proibia o uso da chamada linguagem neutra nas escolas do Estado.

A ação em discussão partiu de uma iniciativa apresentada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino (Contee). A entidade contestou a lei de Rondônia, aprovada em 2021, que impedia a inclusão da linguagem neutra na grade curricular e no material didático de instituições de ensino locais, públicas ou privadas; e em editais de concursos públicos.

Os 11 ministros da Corte declararam que a lei estadual fere a Constituição uma vez que cabe à União legislar sobre normas de ensino.

Segundo o relator do caso, ministro Luiz Edson Fachin, uma “norma estadual que, a pretexto de proteger os estudantes, proíbe modalidade de uso da língua portuguesa viola a competência legislativa da União”. “Cabe à União estabelecer regras minimamente homogêneas em todo território nacional”, escreveu o relator.

O voto de Fachin foi acompanhado na íntegra pelos ministros Alexandre de Moraes, Ricardo Lewandowski, Cármen Lúcia, Dias Toffoli, Luís Roberto Barroso, Rosa Weber, LuizFux e Gilmar Mendes.

Os ministros Nunes Marques e André Mendonça concordaram com o relator em relação à inconstitucionalidade da lei de Rondônia, mas apresentaram ressalvas quanto à tese a ser fixada pela Corte. No caso de André Mendonça, por exemplo, o ministro propôs uma redação mais genérica à sentença: “Norma estadual ou municipal que disponha sobre a língua portuguesa viola a competência legislativa da União”.

Essa decisão proferida pelos ministros do STF, não libera a implementação da linguagem neutra nas escolas. Só define que quem pode estabelecer mudanças no tema é a União. Se por um lado o STF derrubou a lei que proibia o uso da linguagem neutra, por outro também deixou claro que está proibido liberar o uso da linguagem neutra, sem que o MEC crie todo um projeto regulamentando o tema. Isso impede que Estados e municípios governados por quem defende a linguagem neutra se aventure a açodadamente introduzi-la no âmbito escolar.

Alterar a Língua Portuguesa não é uma tarefa fácil. Vai ser necessário muito estudo, avaliações de especialistas no Brasil e em outros países que também utilizam o português e o tema terá que ser debatido e aprovado pelo Congresso Nacional.

As regras da gramática normativa, aquela que aprendemos na escola, demoram a mudar. Primeiro os linguistas analisam as novidades na literatura e nos meios de comunicação. Só quando uma mudança significativa é notada e começa a se tornar corrente nos usos da língua é que são propostas as revisões. Esse processo pode levar anos até virar consenso entre os estudiosos e ir parar nos livros escolares.

Na ortografia, a mudança ocorre por força de lei e também são mudanças bastante raras. O Novo Acordo Ortográfico, que remodelou a Língua Portuguesa para todos os países lusófonos — aqueles que falam a Língua Portuguesa –, foi em 2009 e precedido de longos debates. Nesse caso específico, a intenção dos especialistas foi apenas de simplificar o português para que todos os povos tivessem a mesma escrita.

A decisão do STF, neste momento, não prejudica o debate sobre o tema, só define que apenas a União pode alterar as regras da Língua Portuguesa. Até lá, continuam valendo nas escolas, única e exclusivamente, as normas cultas perpetuadas há séculos por Camões, Fernando Pessoa, Drummond, Bilac e outros tantos que ajudaram a construir e propagar a nossa língua.

 

[Transcrição integral de artigo publicado no jornal “Cruzeiro do Sul” (Brasil) em 11 de Fevereiro de 2023. Destaques, sublinhados e “links” meus.
O jornal é brasileiro, o editorial também, portanto a
cacografia típica da escrita em língua brasileira
do original foi mantida
sem correcção automática.]

Texto completo transcrito no ‘post’ «Um contínuo elogio da loucura» [Maria do Carmo Vieira, 11.02.23]

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