O ‘regime do deixa andar’ [José Carlos Barros]
«José Carlos Barros (Boticas, 1963) é licenciado em Arquitectura Paisagista pela Universidade de Évora e vive no Algarve, em Vila Nova de Cacela. A sua actividade profissional tem sido exercida nos domínios do ordenamento do território e da conservação da natureza. Foi director do Parque Natural da Ria Formosa. É autor, entre outros, dos livros de poesia Uma Abstracção Inútil, Todos os Náufragos, Teoria do Esquecimento, Pequenas Depressões (com Otília Monteiro Fernandes) e As Leis do Povoamento (editado também em castelhano). Com Sete Epígonos de Tebas venceu o Prémio Nacional de Poesia Sebastião da Gama 2009. Em 2003 estreou-se na prosa com O Dia em Que o Mar Desapareceu. Venceu vários prémios literários (com destaque para o Prémio Nacional de Poesia Sebastião da Gama, que lhe foi atribuído duas vezes) e os seus textos poéticos estão publicados em vários países. O Prazer e o Tédio foi o seu primeiro romance, seguido de Um Amigo Para o Inverno (Casa das Letras, 2013), com o qual foi finalista do Prémio LeYa em 2012. Os seus livros mais recentes (poesia) são os seguintes: O Uso dos Venenos, ed. Língua Morta (2ª edição, 2018), A Educação das Crianças, ed. Do Lado Esquerdo Editora, 2020, Estação – Os Poemas do DN Jovem, 1984-1989, ed. On y Va, 2020, e Penélope Escreve a Ulisses, Edições Caixa Alta, 2021.» [Wook]
Esta entrevista do arquitecto, ex-deputado e escritor José Carlos Barros mereceria talvez algumas observações, mas qualquer delas iria decerto dispersar atenções, desviando o enfoque do essencial.
Em traços gerais, as respostas — numa conversa amena, aliás muito bem conduzida — pintam um quadro que, a traço grosso mas a cores, transmitem uma ideia genérica da “paisagem” acordista, num enquadramento em versão bucólica e por isso paradoxalmente assustador, com algum gado vacum e muita carneirada pastando em descanso sob o olhar vigilante de alguns ciosos pastores.
Convirá recordar que o entrevistado foi, em 2017, o deputado relator do Grupo de Trabalho parlamentar para a avaliação do “Impato” do AO90 (por extenso, “Avaliação do Impacto da Aplicação do Acordo Ortográfico de 1990“, de sua graça)[ver Nota, em baixo].
Como diz? Contradição? Bem, com certeza que sim… mas se calhar não. Isto das ralações parlamentares é assim, complicado mas pouco, difícil mas não muito, ao fim e ao cabo trata-se de saber quem diz o quê, se o que diz é “na condição de” deputado ou “enquanto” cidadão e quando e por quem será decidido que afinal a posição final já não é a inicial, muito pelo contrário, vem de trás para a frente e vice-versa.
Para se entender o que pensam ao certo os que “andam na” política, todos eles deveriam ser forçados — como acontece nos filmes — a pendurar ao pescoço um cartaz com os dizeres “qualquer semelhança entre o que eu penso e o que o Partido manda é mera coincidência”.
“Esta asneirada do acordo ortográfico é uma metáfora da degeneração da nossa sociedade”
Diogo Vaz Pinto
11/07/2022
ionline.sapo.ptOs leitores de poesia já se haviam deparado há muito com os inventários afectivos e a subtil ironia de José Carlos Barros. Mas depois de ter já sido finalista do Prémio Leya, com o terceiro romance, aquele cuja escrita se arrastou por uma década, conquistou o prémio e então… o quê? Logo se verá.
Já o chinfrim amainou, e deram por si esgotadas aquelas semanas mais intensas, publicitárias, depois do anúncio do Prémio Leya, resta agora ver de que modo assenta o pó depois desse pequeno pé de vento, sendo este o mais cobiçado pelo valor, pelo pequeno buzinão que se segue, isto quando há muito a literatura por si só não alimenta já grandes farras. A glória literária vive de ninharias e é o passatempo de uns tantos que não se cansam de jogar a feijões e uma ocupação de uns poucos demagogos do mistério, que se devotam a umas aleivosias de feira em feira, improvisando umas patetices choramingonas para essa gente que aparece a fingir de povo. Isto não diminui o empenho daqueles que ainda se esmeram e dão anos da sua vida, tantas horas para superar alguns emperros de ofício, esses que não se encostam ao tal do ‘dom’ mas se esfalfam para encontrar as suas páginas levando a cabo esse esforço de sondagem e conhecimento mágico da realidade, não passando ao lado nem por cima das agruras, dos aspectos mais rudes e esgotantes do quotidiano. Transmontano, nascido em Boticas, e vivendo há vários anos no Algarve, José Carlos Barros foi vereador municipal e ainda deputado na Assembleia da República (2015-2019). Tem-se mantido fiel ao mundo de que sempre foi íntimo, trazendo notícias tantas vezes miúdas, como uma chuva que preferisse a sua avara e honesta melodia a inventar às três pancadas uns vendavais ou tempestades muito postiças. Seja nos poemas que escreve desde a adolescência seja nos romances a que se abalançou já maduro, prefere dizer-nos as coisas claramente, apresentar-nos paisagens de punhos cerrados contra ídolos de pó, do que vir-nos com galanteios de sonhos parvos. Durante o mandato na assembleia, bateu-se como pode contra ‘o silêncio antidemocrático’ com que nos fazem engolir certas aberrações como este novo acordo ortográfico e tem sido sempre uma voz crítica da forma como se tem esquecido o interior do país e se marginalizou a riquíssima cultura das populações rurais. O romance que lhe valeu o Prémio Leya – As Pessoas Invisíveis – procede, de resto, a um ajuste de contas com um obscuro e sujo episódio do período colonial, mas também com esta mentalidade do deixa andar, este alheamento e até receio de enfrentar o passado, isto num país onde persistem as mofentas lérias sobre a grandeza dos nossos feitos, e em que aqueles que nos exaltam a identidade vêm sempre com aranhas na boca já a dobarem a História.
O teu percurso inicia-se com alguns poemas publicados no DN Jovem, é desse modo que primeiro te dás a conhecer.
O DN Jovem foi uma possibilidade que se oferecia a quem existia periférico a tudo isto de poder publicar. Eu cresço na província, numa vila, e o que fui conseguindo publicar foi em jornais regionais, sem grande expressão. Num tempo em que a imprensa escrita tinha uma importância enorme, essa possibilidade era realmente uma abertura imensa. De resto, o que fui escrevendo ao longo dos anos ia saindo em pequenas edições que não alcançavam qualquer expressão. Normalmente, ganhava um prémio literário desses que abundam por aí e editava um livro que, na maior parte dos casos, ficava perdido nalgum armazém, numa câmara municipal ou coisa do género. Por isso eram poucas as pessoas que conheciam o que eu escrevia.
(…)
Vivendo tu a maior parte da tua vida longe dos centros urbanos, residindo actualmente numa propriedade rural em Cacela Velha, e sendo a tua formação a de Arquitecto Paisagista, não sentes que existe uma relação distante, fria e de gabinete em relação a esse outro mundo? E não te parece que existe um paralelo a ser traçado com a forma como se definiu esta norma do novo acordo ortográfico?
Sim, não me é difícil traçar esse paralelo. Tanto na forma como encaramos aquilo a que se convencionou chamar ‘paisagem’, como na questão do novo acordo ortográfico, há uma simplificação assustadora, a qual parece estar associada a uma forma de iliteracia, uma certa desistência de tentar compreender verdadeiramente as coisas. A simplificação é sempre uma forma de desistência, e isto está patente tanto no acordo como nas políticas face ao território. A paisagem é de um certo modo o resultado da relação que se estabelece entre o homem e o território, e, portanto, as comunidades cultas, como eram as antigas comunidades rurais, comunidades profundamente ligadas ao espaço que habitavam e que, por isso, compreendiam a sua complexidade, tratavam o território de uma maneira que levava à criação de paisagens equilibradas e que garantiam essa sustentabilidade de que agora se fala tanto. À medida que nos fomos afastando dessa sabedoria – e afastarmo-nos dela é presumirmos que através da educação dos manuais conhecemos o mundo –, começámos a tratar o território de uma forma muito mais desastrada, e até com uma certa sobranceria. E depois é o mesmo mundo que destrói o território e que não estabelece ligações cultas com a paisagem que vem assumir com um fervor religioso que temos de salvar o planeta e a diversidade das espécies.
E na literatura?
Parece-me que na literatura se pode estar a passar algo de semelhante: fomos caminhando progressivamente para este afunilamento, definindo as regras segundo as quais tudo deve funcionar, e depois espantamo-nos que a criatividade tenha acabado sufocada debaixo dessas convenções. Ao mesmo tempo, perdemos de vista o que é essencial, aquilo que nasce à volta disso ou até alheio a esse subsistema, e que mantém a sua interrogação fora desse regime. Se pudesse vincar uma qualidade que julgo que existe na minha escrita é o parecer ainda estranha. Por exemplo, há vários dos meus poemas que se bastam com um olhar desarmado sobre as coisas à sua volta, sobre a paisagem, e o que me dizem dos meus poemas é que, apesar de breves, e não particularmente complicados, vincam essa estranheza.
(…)
Entendes essa resistência a noções como a de tradição como algo que deriva de uma angústia contemporânea em que muitas pessoas sentem que se não estiverem constantemente a demolir ou a cortar com o passado, não estão a ter um papel activo e a inventar o mundo em três dias, isto quando na compressão bíblica foram precisos sete dias para a criação do mundo?
É, há gente que, desse ponto de vista, parece ter uma ambição superior à de Deus. Parece que querem refazer as coisas ainda mais depressa, e é claro que têm mais sucesso no capítulo da destruição do que no da reconstrução. É curioso como regressamos sempre às questões da ruralidade… Cada vez admiro mais as comunidades rurais que conheci na minha infância e que, entretanto, foram sendo desmanteladas. E isto porque vejo nelas uma cultura secular e que, hoje, nos faz muita falta. Quando subitamente estamos todos a discutir as alterações climáticas e as medidas que é preciso tomar em termos ambientais, quando oiço dizer que é preciso recuperar agro-sistemas sustentáveis, etc., é incrível ouvir dizer isso e ter a consciência de que isso foi o que passámos as últimas décadas a destruir. Que coisa estranha que se oiça agora dizer – pelo menos em teoria, porque depois na prática já se sabe como as coisas se passam – estas coisas como se tivéssemos descoberto a pólvora, desejando-se regressar a formas de relacionamento com o território que foram aquelas que abandonámos num período que não ultrapassa o meu tempo de vida. Por isso é que me parece que deve haver também agora formas de resistência para não nos deixarmos seduzir por determinadas modas… Gosto da ideia de que a pólvora já foi inventada há muito tempo e que não precisamos de estar sempre a deixarmo-nos guiar por epifanias e a balançar entre noções contrárias que apenas prosseguem os fins do desmantelamento daquilo que foi construído com grande custo.
Voltando à questão do acordo ortográfico, como é que foi lidar de frente e enquanto deputado com um dos fenómenos que mais claramente nos demonstra o funcionamento dessa estupidez organizada e de gabinete que, depois de ser imposta, parece impossível travar?
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