Lusofobia: causa(s) e efeito(s) – 3

A actriz Maitê Proença gravou em Portugal um vídeo que foi transmitido para todo o Brasil pelo canal GNT, algures em 2007; esta gravação do programa “Saia Curta” foi descoberta por alguém que resolveu, e muito bem, colocar uma cópia no YouTube.

Esta coisa já teve repercussões em todos os meios de comunicação social convencionais e, evidente e principalmente, também no Twitter, no Facebook, nos blogs e em outras redes, sistemas e plataformas virtuais.

A questão, como alguns diletantes pretendem fazer crer, não se resume a um fait divers inconsequente. O facto de alguns portugueses se sentirem cultural, nacional e mesmo pessoalmente insultados é uma reacção tão natural como a de qualquer poltrão não ter reacção de espécie alguma – à excepção da sua (deles, poltrões) costumeira ironia tresandando a mania da superioridade.
A questão, neste episódio, radica na atávica lusofobia que uma parte dos brasileiros sistematicamente faz questão de alardear, por um lado, e no desprezo ancestral que essa mesma parte sente e demonstra pela sua própria História, pela sua Cultura ou, dito de outra forma, radica na idolatria pacóvia que certos brasileiros e brasileiras devotam à mais pura, singela, esmagadora ignorância.

Aquela “senhora”, acompanhada em estúdio por outras igualmente merecedoras de aspas na designação, não se limitou a trocar umas piadolas em privado sobre essa coisa “de somenos” que é Portugal. Não. Aquele chorrilho de insultos, aquela parafernália asquerosa de xenofobia, de boçalidade, de pura estupidez e da mais despudorada lusofobia, tudo isso foi servido, por sinal em péssimo Português e com um nível de instrução do mais rasteirinho que existe, a todo o Povo brasileiro. Aquela “senhora” e as outras que tal não estavam propriamente numa roda de amigalhaços a soltar umas larachas avinhadas sobre Portugal e os Portugueses. Seja lá como for que se passem esses mistérios em terras de Vera-Cruz, aquelas “senhoras” alcançaram – quiçá em virtude da sua imbatível ignorância – o estatuto de figuras públicas e, vá-se lá entender o paradoxo, até mesmo de referências culturais para as “massas”. Têm, qualquer delas, por conseguinte, responsabilidades que não lhes caberiam em circunstâncias informais, em ambiente privado e restrito.Assim, arrogando-se o direito de enxovalhar publicamente não apenas a sua própria História mas também a de um Povo independente e a de um país soberano, bem, nesse caso outra coisa não poderiam esperar as ditas “senhoras” mai-las suas risadinhas imbecis: haverá certamente por aí gente que não é filha de boa gente e que, por conseguinte, como se costuma dizer, não se sente, mas serão por certo uma risível minoria – para a maioria dos portugueses esta afronta não pode passar em claro.

A “senhora” Proença que se retracte, de forma igualmente pública e com igual projecção mediática, desmentindo tintin-por-tintin as calúnias e as mentiras exibidas na “reportagem” em causa. A GNT (Rede Globo) que peça formalmente desculpas ao nosso país e ao nosso Povo por ter permitido a emissão de semelhante nojo.

Quanto às autoridades portuguesas, no que diz respeito a este episódio, que é, além do mais, um evidente caso de Polícia, esperemos actuem devidamente e como manda a Lei: existem matérias de prova suficientes para procedimento judicial por conduta imprópria em território nacional. Talvez mesmo não fosse exagerado, como muito bem sugere Luísa Castel-Branco, declarar oficialmente Maitê Proença como persona non grata em Portugal. [“post” no “blog” Apdeites, 13.10.2009]

Dar a outra face?

O texto do “post” acima, publicado num dos meus antigos “blogs”, foi repescado dos já remotos tempos em que ainda ninguém acreditava que fosse possível suceder o que mais tarde se viu — e se continua a ver –, com a “adoção” à força (e à sorrelfa) do AO90. Por isso mesmo, dado que os marcos temporais quanto ao episódio da imbecil “atriz” já não interessam e visto que nessa época eu próprio era “um pouco” ingénuo (porque inexperiente em matéria de lusofobia), a transcrição acima não é nem integral nem ipsis verbis; de fora, omitidas, ficaram as referências a datas e algumas expressões que entretanto se tornaram obsoletas. De qualquer forma, o original lá continua, intocado, mantendo no essencial toda a actualidade; de facto, o anti-portuguesismo brasileiro percorreu um longo e (exclusivamente para os portugueses) penoso caminho que definitivamente descambou, agora sem sequer se ralar alguém de lá com subterfúgios e desculpas esfarrapadas, em manifestações xenófobas e racistas — sem mais atavios nem disfarces.

Desde 1822 até aos nossos dias, mais marcadamente em certos períodos históricos mas desde sempre em estado latente — com a característica prontidão brasileira para a violência –, em maior ou ainda mais insuportável grau, a aversão dos brasileiros ao “tuga” é uma espécie de pau para toda a obra, a desculpa favorita de que aquela ex-colónia sempre se socorre para justificar, iludir, desculpar, passar uma esponja por cima de todos os seus próprios falhanços enquanto povo e como nação independente.

«Depois das agruras da viagem, o português desembarcado no Brasil depara, particularmente nos tempos pós-independência, com uma lusofobia acentuada, que sintetiza vários tipos de animosidades (políticas, económicas, sentimentos de rua contra a carestia…). Pedro Calmon sublinhou devidamente as dificuldades iniciais de um “sistema imigrantista” que substituísse a escravidão, devido a “preconceitos ancestrais, de xenofobia colonial, cuja informe agressividade espicaçava, nas ruas, o delírio nacionalista”. E, “consumada a Independência, resta o acto popular de desforra, o matamaroto, que na Baía se repete, pitoresca e tragicamente, todo o ano, e em Recife tem o aspecto de uma ameaça permanente, social da patuleia contra o comércio retalhista”» (…) «Embora amainando à medida que surgiam medidas graduais no longo caminho da abolição da escravatura e se desenvolviam políticas de imigração, esta animosidade está subjacente ao relacionamento do brasileiro com o português, num clima vivencial que Pedro Calmon definiu exemplarmente como “o contraste entre a transacção lusófila do alto e a trepidante lusofobia das ruas“. Assim, de vez em quando emergem conflitos em que o português se torna bode expiatório.»

[Alves, Jorge Fernandes – Variações sobre o “brasileiro” – Tensões na emigração e no retorno do Brasil. Revista Portuguesa de História, tomo XXXIII (1999), U. Coimbra, p.191-222]

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