Pela milionésima vez: o “acordo ortográfico” de 1990 não é um acordo, é uma imposição, e de ortográfico absolutamente nada tem, não passa de um acto político… na pior acepção do termo.
O que ainda resta de indefinido — se algo há ainda por definir — é a extensão, a abrangência da sinistra manobra a que alguns políticos dedicados à “causa” dos seus próprios interesses envidam todos os esforços. Permanecendo os mandantes — uns cinco ou seis — na sombra, evidentemente, até porque seria “ligeiramente” escandaloso que os fabulosos negócios (dos) envolvidos se tornassem do conhecimento público, o quase nada que ainda vai transparecendo surge apenas por mero acaso, quando um qualquer indivíduo, de entre as largas dezenas de mandados, se descai, quando há um lapsus linguae aqui ou ali, quando alguém desbronca-se sem querer (ou por influência de qualquer substância química).
Daí, aliás, por inerência e para limitar os estragos ab ovo, o investimento da diminuta mas poderosa oligarquia na compra de órgãos de comunicação social para a propaganda, por um lado, e, por outro, no recrutamento de mercenários em geral como mão-de-obra, provindos de seitas tão heterogéneas como a dos intelectuais de pacotilha, solícitos demagogos profissionais para abastecer as “notícias” (ou certos artigos “de opinião”) e, por fim, agentes das diversas polícias políticas com a dupla finalidade de criar o conveniente clima de intimidação e esmagar subtilmente qualquer esgar de dúvida ou tiques altamente suspeitos, como soerguer uma sobrancelha, torcer o nariz ou projectar as beiças.
O processo de demolição derivado à obsolescência da verdade começou com a gigantesca patranha da língua universáu (a brasileira, evidentemente), tudo embrulhado numa retórica impenetrável — espécie de rede de chavões absurdos — visando explicar o inexplicável ou justificar o injustificável, e portanto é de certa forma natural que pouca gente (ou nenhuma, vendo bem) tenha sequer dado conta das verdadeiras dimensões da coisa, a sua latitude e demais coordenadas, a longitude, o paralelo, o fuso horário, a distância relativa a Greenwich no tempo e no espaço. Ou seja, traduzindo em miúdos, o ponto a que “isto” chegou.
Será de todo previsível uma imensa dificuldade em processar ao que isto chegou, realmente. A agenda política atrelada ao “acordo” ultrapassa largamente qualquer âmbito — já de há muito se sabe que a ortografia foi em tempos um pretexto mais do que pífio, ridículo — e por fim chegou tal agenda, veja-se a “figura” junta, a uma espécie de questão que não dirá certamente coisa alguma a quem jamais engoliu as patranhas “unificadoras” — linguisticamente falando — e também pouco ou nada dirá à esmagadora maioria que verga a cerviz porque “isto agora é assim”.
A referida “figura junta”, triste figura, por sinal, está já pipocando no Brasil, como se confere e demonstra no artigo abaixo transcrito, publicado no “portal do Governo do Brasil” a pretexto e à boleia do Dia Mundial da Língua brasileira.
Ultrapassadas as tretas folclóricas habituais, loas à tal língua universau com citações de uns quantos brasileiros mais ou menos ilustres, a linha discursiva trepa para cima do ensino e daí o que se deve dar por lá nas aulas, a saber, que existe uma coisa chamada “o carácter fluido da língua” (sobre o AO90 era parecido, “a língua evolui”, já não falamos como o Camões, patacoadas assim) e que há um demónio a extirpar (ou estripar) dos anais, salvo seja, o “preconceito linguístico” — t’arrenego, Satanás, cospe, cospe — e “portanto” saltar do “preconceito” para o “racismo”, para a “xenofobia” e para outras “fobias” é um pulinho.
E… pim. Das “fobias” em geral e das “regras” de “fluidez” (linguística, recorde-se, não é de outros fluidos que se trata agora), o libelo panfletário aterra na ingente questão que aflige uma data de adultos riquinhos e alegretes. U siguintchi, viu?
«Essa polêmica com o pronome neutro disfarça um preconceito anterior, que está na recusa da percepção das identidades de gênero e sexualidade que não se reduzem aos binômios masculino e feminino.»
E pronto, já está: outra vertente, a mesma onda. A tal agenda política (bem, sim, não será só política, mas, como dizia a outra, isso agora não interessa nada).
Conviria ligar as pontas. Não as soltas, que disso não existe neste caso, tão clarinho ele é, mas ligar uma ponta do iceberg à outra ponta, a dos dicionários, nas páginas “P” de “pronome”, “M” de masculino, “F” de feminino, “G” de género, “S” de sexualidade e por fim a “E” de evidência, evidente e “espetáculo” se for um Houaïss ou da Porto (Alegre) Editora.
Sabendo, como hoje por hoje ninguém pode ter dúvidas, que as incidências políticas no império brasileiro afectarão mais tarde ou mais cedo todas as suas colónias (a CPLB). O que for determinado no Brasil passa, nos termos do “acordo ortográfico de 1990”, a valer em todos os demais oito Estados vagamente autónomos. Aliás, nem é preciso que oito funcionários administrativos, cada qual em representação do respectivo Governo autónomo, assine a ordem exarada pela “metrópole”; bastam três deles, digo, delos/as, para que o/a/os/as/x frasxs/as/os valham por todes/os/as outrxs/as/os.
Dia Mundial da Língua Portuguesa celebra diversidade e cultura
Portal do Governo do Brasil – UFJF – 05.05.22
Guitarras e sanfonas / Jasmins, coqueiros, fontes / Sardinhas, mandioca / Num suave azulejo / E o rio Amazonas / Que corre Trás-Os-Montes / E numa pororoca / Deságua no Tejo
Da América, falam brasileiros. Da África, angolanos, cabo-verdianos, moçambicanos e as populações da Guiné-Bissau, da Guiné-Equatorial e de São Tomé e Príncipe. Da Ásia, falam os habitantes do Timor-Leste. E do continente europeu, os portugueses, responsáveis pela colonização de todos esses países, processo que, para além da instituição do Português como língua oficial nesses territórios, acabou forçando o cruzamento da cultura dos povos originários com os colonizadores europeus.
As palavras do cantor e compositor Chico Buarque, de 1973, que abrem essa reportagem em alusão à colonização portuguesa no Brasil, refletem sobre a constituição de um idioma falado por mais de 265 milhões de pessoas ao redor do mundo, instituído como língua pátria em nove países distribuídos por quatro continentes do planeta.
Neste 5 de maio, Dia Mundial da Língua Portuguesa, é preciso celebrar a língua e as culturas lusófonas. A data, oficialmente estabelecida em 2009 pela Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), organização intergovernamental e parceira oficial da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), foi criada para promover o multilinguismo e a diversidade cultural, para sensibilizar a comunidade internacional para a história, a cultura e a utilização da língua, em toda a sua extensão geográfica.
O mais importante, portanto, é celebrar a diversidade desses recursos que temos disponíveis sob esse rótulo do que estamos chamando de Língua Portuguesa
Segundo a professora da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) Denise Weiss, o Português foi se formando a partir de uma mistura de povos em uma pequena parte da península ibérica, na região norte do que hoje é Portugal. “Há mil anos ele já era reconhecido como uma língua diferente das demais da região. Língua imperial e de viajantes, chegou a muitas partes do mundo em navios de comércio e de colonização. Hoje é uma língua pluricêntrica.” Além dos países que possuem o Português como língua pátria, ele está presente por todo mundo pelas comunidades que migram. “Em cada lugar, é fator de distinção de grupos, língua dos afetos ou dos negócios”, conclui ela exaltando a diversidade cultural celebrada pela data.
Para o docente da Faculdade de Educação (Faced) Alexandre Cadilhe, é fundamental enxergar as línguas como produções coletivas, atravessadas pela história, cultura, geografia, tempo e espaço e que, independentemente de suas origens, são objetos mutáveis. “A Língua Portuguesa, assim como qualquer outra, não se constitui como algo puro. Ela é resultado do latino, do europeu, da contribuição de povos indígenas e africanos. É isso que a torna um conjunto híbrido. O mais importante, portanto, é celebrar a diversidade desses recursos que temos disponíveis sob esse rótulo do que estamos chamando de Língua Portuguesa”, exalta Cadilhe.
O ensino em debate
O professor da Faced destaca que esse caráter fluido da língua deve ser entendido, no campo da Educação Linguística, como determinante para o ensino do Português. Para Cadilhe, a corrente, que tem se popularizado dentro dos estudos da linguística aplicada, compreende que o ensino de língua não se reduz à transmissão de saberes gramaticais, textuais e discursivos. Cultura, diversidade e práticas sociais são partes que constituem uma linguagem para além de sua composição verbal. “Trabalho com a perspectiva de que o professor de Língua Portuguesa mobiliza múltiplos saberes que levam em conta a questão da diversidade e que assumem um compromisso com a justiça social. Trata-se de um empreendimento multidisciplinar”, explica o docente, que é líder do grupo de pesquisa Linguística Aplicada, Educação e Direitos Humanos (LAEDH/UFJF).Pensando desta maneira, Cadilhe foi um dos responsáveis pela nota de repúdio ao Projeto de Lei (PL) 00117/2021, em tramitação na Câmara Municipal de Juiz de Fora, que estabelece que o ensino da Língua Portuguesa deve reduzir-se ao “Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa e da gramática elaborada de acordo com a reforma ortográfica ratificada pela Comunidade de Países da Língua Portuguesa”, conforme decretos federais. Em resumo, o Projeto de Lei determina que a Língua Portuguesa deve ser ensinada nas escolas “de acordo com a norma padrão”, “sob as orientações dos órgãos reguladores da educação no país”. O PL prevê multa de R$1 mil para os professores da rede pública de ensino que supostamente ferirem a determinação.
A nota, assinada por diversos institutos, faculdades, grupos e docentes da UFJF, bem como por coletivos e associações da cidade de Juiz de Fora, afirma que tal PL vai de encontro à Constituição Federal de 1988, que garante “a igualdade de condições para o acesso e permanência na escola”, “a liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber”, e “o pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas” em instituições públicas e privadas de ensino.
Ainda segundo o documento de repúdio, a Base Nacional Comum Curricular estabelece que é preciso “compreender a língua como fenômeno cultural, histórico, social, variável, heterogêneo e sensível aos contextos de uso” e “o fenômeno da variação linguística, demonstrando atitudes respeitosas diante das variedades linguísticas e rejeitando preconceitos linguísticos”. Diante disso, segundo Cadilhe, o projeto apresenta uma contradição inconstitucional, ao ferir a própria BNCC.
Pronome neutro é alvo de ataque
A tentativa de interferência legal, sob o argumento de proteger a Língua Portuguesa, ainda pode ser evidenciada pela proibição do uso do pronome neutro no ambiente educacional. Grupos conservadores da sociedade afirmam que não fazem parte da “norma culta” ou “norma legal” a utilização de palavras como “todes”. Para o professor Alexandre Cadilhe, o uso do pronome neutro representa um grupo social minoritarizado e sua recusa significa a invisibilização de pessoas que não se reconhecem, por exemplo, por “eles” e “elas”. “Essa polêmica com o pronome neutro disfarça um preconceito anterior, que está na recusa da percepção das identidades de gênero e sexualidade que não se reduzem aos binômios masculino e feminino”, explica.
Essa polêmica com o pronome neutro disfarça um preconceito anterior, que está na recusa da percepção das identidades de gênero e sexualidade que não se reduzem aos binômios masculino e feminino
É natural que, em uma sala de aula, os profissionais da educação discutam com os estudantes certos recursos linguísticos já inseridos na vida cotidiana, conforme aponta Cadilhe. “Não é a escola que está inventando a linguagem inclusiva. Ela já está presente na mídia, de modo que alunos, alunas e alunes leem, ouvem, têm acesso à informação e eles mesmos levam a demanda para seus professores. A punição representa, portanto, o impedimento do diálogo entre discentes e docentes.”
O depoimento do professor é reforçado por alguém que vive na pele a experiência. Sidney Aurum Monteiro Vieira é alune da Faculdade de Serviço Social da UFJF, tem 22 anos e se identifica como trans não binárie, de gênero fluido sem alinhamento, bissexual e não monogamique. Ou seja, Sidney se identifica com mais de um gênero e, para elo, o gênero neutro é apenas um espectro de sua não binariedade. Porém, elo ressalta que nem toda pessoa não binária utiliza pronomes neutros. “Mesmo assim, a linguagem neutra é uma das nossas pautas específicas com mais visibilidade, que sofre ataques constantes, principalmente no meio legal, com investidas que tentam torná-la crime. Isso é um indicador que tenta nos tornar ainda mais invisíveis”, afirma Sidney.
Assim como Cadilhe, Sidney acredita na Língua Portuguesa como um organismo vivo, em constante mudança. “Uma vez ouvi uma pessoa formada em Letras dizer que ‘a função de uma língua é servir a seus falantes’ e me pergunto: isso não é verdade? Todos os dias novas palavras surgem para designar coisas novas que aparecem, seja no campo científico ou no cotidiano da maioria da população. Inclusive, palavras que hoje são utilizadas com frequência nem existiam há alguns anos. Proibir isso é um ato arbitrário”.
Regras estão em constante mudança
O uso da linguagem inclusiva do gênero neutro não é, ainda, recorrente dentro das salas de aula. É o que aponta a doutora em Letras: Estudos Literários Francine Alves de Oliveira, cuja pesquisa teve foco na representação de travestis e mulheres trans na literatura brasileira contemporânea. Francine, que também tem formação em Letras, participa frequentemente de palestras e rodas de conversa sobre a questão da linguagem e da representatividade e conta que não existe imposição para o uso dos pronomes neutros no currículo escolar. Apesar de o tema não ser novidade para pesquisadores, na prática seu uso ainda é restrito.
“Há muito os estudos da linguagem debatem a respeito de questões como a utilização do masculino genérico – a regra de que basta um elemento ou indivíduo masculino em um grupo para que a designação no plural esteja também no masculino. Os próprios pronomes neutros estavam presentes no Latim, língua da qual o Português se origina, e um resgate de seu uso não seria novidade alguma”, aponta Francine.
As regras gramaticais não são naturais, elas são inventadas e impostas. E podem mudar, como ocorreu à época do Novo Acordo Ortográfico, e certamente mudarão novamente no futuro
Francine também reforça que, para auxiliar jovens a construírem pensamento crítico, os professores precisam ter liberdade de levantar debates sobre o que está em curso na sociedade e que falar em pronomes neutros ou abordar a linguagem considerada fora do Português “correto” não significa que as regras da gramática prescritiva não serão todas devidamente abordadas em sala de aula. “As regras gramaticais não são naturais, elas são inventadas e impostas. E podem mudar, como ocorreu à época do Novo Acordo Ortográfico, e certamente mudarão novamente no futuro”, acredita Francine.
Pensar o Português como elemento que é atravessado pelo tempo e pelos múltiplos espaços e indivíduos que compõem qualquer tipo de território é necessário para entender a língua como objeto construído e reconstruído pela História e pelas pessoas. Versada por Olavo Bilac como a “Última flor do Lácio, inculta e bela” por ser a última língua neolatina formada a partir do latim vulgar, falado na região italiana do Lácio, a língua portuguesa atravessou mares e continentes para chegar ao dias atuais como a quarta língua mais falada pelo mundo. Mesmo com tantas léguas a nos separar.
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[Imagem de topo (recorte) de: “blog” dotempoedaluzl