Língua vazia

Population (2020): 12,400,232 | Metro: 22,001,281 (Greater São Paulo) [Wikipedia]

«A única solução para o infeliz acordo seria rasgá-lo. Mas ‘repensar’ também serve, desde que isso sirva para cobrir de vergonha a parolada nativa que abraçou o acordo sem parar para pensar.» [João Pereira Coutinho, 28.01.17]

«Como foi possível levar a sério o acordo ortográfico?»
«O problema do acordo é termos tido vários governos que, reverentes e analfabetos, foram ratificando, modificando e legislando como se o acordo fosse mesmo para levar a sério.»
[João Pereira Coutinho, 08.05.16]

Mau, mau, mau. A julgar pelo palavreado desconexo que alardeia neste seu artigo, o mais recente dos que foi escrevendo sobre o AO90, parece-me legítimo formular a seguinte singela pergunta: o que terá acontecido para que João Pereira Coutinho tenha subitamente desatado a confundir o AO90 com os “linguistas” de serviço que o fizeram? Ter-lhe-á dado, a JPC, assim de repente, quando por acaso estava (ou está) no Brasil em serviço, alguma camoeca? Mas afinal o que diabo tem o AO90 a ver com as calças?

Se, de facto, foi um lapso momentâneo, um simples hiato ou decerto acidental pancada fortuita com a testa em alguma portada baixinha, bom, vejamos, então já é outro falar e nesse caso talvez valha a pena relembrar a propósito o bê-á-bá.

Por uma questão de higiene mental e para que resulte claro da leitura que de facto JPC não terá dado uma inoportuna cabeçada, acrescentei na transcrição emendas entre parêntesis rectos ([…]), nos casos em que me pareceu que o texto original foi adaptado pelo editor brasileiro do jornal brasileiro para brasileiro (conseguir) ler a prosa redigida no Português vernáculo*** do original. Como sabemos, os brasileiros que sabem ler têm uma relação extremamente conflituosa com as línguas estrangeiras, a começar pela portuguesa, e por isso mesmo não apenas traduzem todo e qualquer texto em Português como vão ao ponto de legendar em brasileiro, nos canais de TV, tudo o que um tuga diz na estranhíssima língua cuja designação, “língua portuguesa” (ou “português”), foi segundo eles roubada aos brasileiros, os únicos detentores da patente da “língua univerrssau“.

Enfim, adiante, vamos ao artigo propriamente dito. A ver se tiramos a limpo o que afinal se terá passado na ligeiramente vertiginosa carola do escriba para que tenha debitado tamanha concentração de “distracções” e tal sortido de “variações”.

O pressuposto inicial em que o escriba se estriba, executando um estranhíssimo número de malabarismo argumentativo — aliás, um pouco trapalhão — sem qualquer mérito ou a merecer o menor crédito, é inventar de raiz uma estranha e indistinta figura genérica de malvados aos quais chama, em tom de insulto e chacota, “os puristas da língua”. Não se refere com certeza aos que rasgam as vestes por causa de estrangeirismos, barbarismos, francesismos e, principalmente, anglicismos. Não. Com esses não se chateará JPC porque esses mesmos não chatearão JPC; é-lhe indiferente, e bem, que tais fanáticos domésticos não parem nos sinais de STOP (“to stop” é um verbo em Inglês, que horror), que não apreciem nem “mousse” nem “suflé” (olha, “soufflé”, é Francês, que nojo, iach!) ou que tenham raiva a “olés”, a “faenas, a “chicuelinas” (espanholadas tauromáquicas por junto, t’arrenego). Pois nada disso interessa. O epíteto assenta inteirinho e em exclusivo, segundo a estranha formulação do autor, nos lombos dos acordistas portugueses, os patuscos que pretendem esgalhar uma “língua unificada” e tudo.

Mas que raio de confusão, caro JPC! Não é isso o que pretendem patuscos nem o que procuram vendidos nem o que privilegiam traidores; de todo; ou, melhor dizendo, isso tanto se lhes dá como se lhes deu, essa tanga da língua “univerrsáu” serve exclusivamente para fingir que a CPLB não é uma máquina brasileira de fazer negócios e que o principal objectivo desta não é o saque metódico das riquezas naturais das ex-colónias portuguesas em África.

Convém não confundir a narrativa para enganar saloios e deslumbrados com a geral ânsia de enriquecer rapidamente dos inventores da dita narrativa e seus lacaios. Não passam, como nunca passaram, de paus-mandados do seu patronato tuga-zuca — os ladrões podres de ricos da “santa aliança” atlântica (abençoada pela própria Igreja Católica), empresários políticos e políticos empresários com ligações nada discretas a irmandades não muito secretas com evidentes ligações aos meandros do poder político.

Bom, findemos, que isto ele é viscosidade a virar com pinças, portanto já basta o que basta, fiquemo-nos pelo essencial.

Pareceu-me da leitura do artigo que a JPC baralharam-se-lhe um pouco as ideias mas devo com certeza ter entendido mal. Ou então não entendi de todo.

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Português, uma língua vadia

João Pereira Coutinho

“Gazeta do Povo”, 12.04.22

São Paulo, 11 horas da manhã. Entro no táxi, indico o endereço ao motorista, o carro inicia a viagem. Conversamos. Política, pandemia, trânsito na cidade. A certa altura, ele pergunta: “De onde você é?” Respondo, um pouco surpreso: “Portugal”. Ele sorri e depois elogia: “Você fala muito bem a nossa língua”.

Agradeço, honrado: quem diria que, vindo de Portugal, eu saberia falar essa língua chamada português? Aliás, até acrescento: “Língua difícil, mas eu vou chegar lá”. Ele, compreensivo, consola a minha insegurança: “Imagina! Já está bom assim”.

Seria fácil olhar para o motorista e deplorar a ignorância dele. Será que ele nunca estabeleceu uma ligação entre “Portugal” e “língua portuguesa”? Pergunta absurda. Talvez o ignorante seja eu. Talvez o meu português seja mesmo diferente do dele. Talvez ele fale “português” e o meu português seja uma melodia parecida, familiar, quase igual. Quase.

Não sabem os puristas da língua, esses que sonham com um idioma unificado e até fizeram um Acordo Ortográfico, que o português nasceu antes de Portugal e que continuará a evoluir fora do país?

É uma hipótese que não me perturba, apesar de perturbar os puristas da língua, que sonham com um idioma unificado. Conheço vários: confrontam-se com versões brasileiras ou africanas – na sintaxe, no léxico, na semântica – e vão a correr buscar os dicionários e as gramáticas, com a fúria punitiva de um mestre-escola. Alguns até fizeram um Acordo Ortográfico, a suprema tentação racionalista, para determinar como milhões de falantes devem usar o idioma. Pobrezinhos. Não saberão eles que o português nasceu antes de Portugal e que continuará a evoluir fora do país?

Tomo essa ideia de empréstimo a Fernando Venâncio e ao seu livro Assim Nasceu uma Língua – edição portuguesa da Guerra & Paz –, que não me canso de recomendar. O português é anterior a Portugal? Sim, se olharmos para a Península Ibérica, algures no século 6.º [VI], quando o espanhol e o galego, ambos derivados do latim, se escutavam por aquelas bandas. O que parece ter singularizado o galego foi o abandono de certas letras intervocálicas, como o “l” ou o “n”, que acabariam por definir o português. “Voar” não é “volar”. “Perdoar” não é “perdonar”.

Quando Portugal nasce em 1143, não nasce nenhuma língua portuguesa. Dom Afonso Henriques não era como aquele personagem de um filme de Woody Allen, que obrigava todo [o] mundo a falar subitamente sueco na sua recém-criada república das bananas. O galego era o idioma do baronato medieval do norte [Norte] do país, pelo menos até inícios do século 14, quando começa um afastamento dessa raiz “rural”. Introduz-se o “i” entre vogais, por exemplo, e os galaicos “avea”, “balea” ou “cadea” viram “aveia”, “baleia”, “cadeia”.

Mas a deslocação do poder político para sul [Sul], para Lisboa, também faz com que a língua, ironicamente, se aproxime do espanhol, considerada a língua erudita pelas elites. É o momento em que o “l” e o “n”, expulsos séculos antes, regressam pela porta da frente. “Dooroso” é agora “doloroso”. “Lumioso” é “luminoso”. Esse namoro continuará até ao século 18 [XVIII], quando a França das luzes [Luzes] irradia sobre a Europa a sua supremacia e influência. Pelo menos, até o inglês acabar com a festa francófona, contaminando o linguajar dos patrícios.

Como [pode] a fala do Brasil ou Moçambique pode seguir [continuar] fiel ao marido português?

Eis a verdade: a língua portuguesa sempre foi promíscua. E quando não estava recebendo [a receber] influências terceiras, ela própria criava [as] suas extravagâncias. Em que outras línguas românicas se encontram adjetivos [adjectivos] como “inglório”, verbos como “fruir” ou substantivos como “pelintra”? A Espanha pode ter muita gente fidalgal; mas tente encontrar por lá alguém “figadal”.

Nas palavras de Fernando Venâncio, “a história do português é, em larga medida, a história das suas tentativas de afastamento do galego”. E o que é válido para o passado será válido para o presente e para o futuro: como esperar que a fala do Brasil, ou de Angola, ou de Moçambique, continue fiel ao marido português? O marido nunca foi fiel, para começar. Razão pela qual não deve fazer cena [cenas] quando “flagra” a sua dona numa “paquera”, num “amasso” ou numa “transa”.

Nos próximos anos, nas minhas estadas paulistanas, prometo continuar o estudo da língua que os nativos falam. Quem sabe? Um dia, eu próprio serei capaz de falar na perfeição esse tal de [de] português.

Conteúdo editado por: MarcioAntonio Campos

João Pereira Coutinho
Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa

[Transcrição integral (assinalei a tradução brasileira) de artigo, da autoria de João Pereira Coutinho, publicado no jornal brasileiro “Gazeta do Povo” em 12.04.22. Destaques, sublinhados, notas e “links” meus. Imagem de topo (recorte de): revista “Exame” (Brasil). Créditos das imagens restantes: ver “posts” respectivos.]

***Off-topic: devido a um estranho fenómeno de contaminação (a asneira é o mais contagioso dos vírus), o significado de “vernáculo” (adjectivo/substantivo masculino) é rigorosamente o contrário daquele que geralmente se lhe atribui, Convinha ver.]


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