Palavra de honra

«“absolutamente contra” o acordo ortográfico que visava o impossível: unificar as diversas formas de escrever em português, objectivo que não foi nem jamais será alcançado.»

Esta é a frase-chave do artigo e sintetiza, sem dúvida, a posição do recém-eleito Presidente da Fundação Calouste Gulbenkian quanto à cacografia brasileira imposta pelo AO90. Do recente acto eleitoral da FCG resultou, por conseguinte, a excelente notícia de que a imprensa em geral e o “Semanário Novo” em particular vão dando conta (alguns a contragosto, é certo, pois então agora assoem-se a este guardanapo), espécie de presente de Natal que agradará com certeza a todos aqueles que não apreciam cangas neo-colonialistas.

Como o descreve o jornalista do “Novo” no seu texto, António Feijó é «um intelectual verdadeiro, daqueles que não precisam de pôr-se em bicos de pés a soltar estridências para se fazerem notar».

Excelente. Será legítimo, portanto, esperar do novo Presidente que tome uma atitude consequente e firme, no âmbito e no estrito cumprimento das suas competências e responsabilidades, que liberte do camartelo estupidificante a Fundação Calouste Gulbenkian — um verdadeiro e sério, se bem que informal — Ministério da Cultura, muito ao contrário do outro, o governamental, essa máquina de propaganda da língua brasileira universáu, essa bola de demolição do Português.

A FCG é, nos termos dos seus estatutos (1956), “uma instituição particular de utilidade pública”, reconhecida como tal pelo Estado português na Lei-Quadro do Estatuto de Utilidade Pública (2021). Isto significa, no que diz respeito a todos os actos de gestão, administrativos, financeiros ou outros, que a Fundação não está de forma alguma vinculada a qualquer órgão governamental ou tutela oficial, sendo totalmente independente e livre na prossecução dos objectivos que presidiram à sua constituição, conforme as orientações e determinações dos seus próprios órgãos directivos.

Ora, não tendo a FCG qualquer espécie de vínculo com ou obrigação para com o Estado — e muito menos quanto ao Governo — então não se lhe aplica (como não se aplica a quaisquer empresas ou organizações privadas) a imposição ditatorial do “gabinete” de José Sócrates em 2011:

«Determinar que, a partir de 1 de Janeiro de 2012, o Governo e todos os serviços, organismos e entidades sujeitos aos poderes de direcção, superintendência e tutela do Governo aplicam a grafia do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, aprovado pela Resolução da Assembleia da República n.º 26/91 e ratificado pelo Decreto do Presidente da República n.º 43/91, ambos de 23 de Agosto, em todos os actos, decisões, normas, orientações, documentos, edições, publicações, bens culturais ou quaisquer textos e comunicações, sejam internos ou externos, independentemente do suporte, bem como a todos aqueles que venham a ser objecto de revisão, reedição, reimpressão ou qualquer outra forma de modificação.»

António Feijó apenas terá, enquanto Presidente da Fundação Calouste Gulbenkian, de tomar uma atitude coerente e consequente em função daquilo que sempre disse — e disse bem. Não se trata de algo muito difícil, não é propriamente necessário ou obrigatório tirar um doutoramento em ciências aero-espaciais, para o efeito bastará um módico de bom-senso e um mínimo de respeito pela Língua Portuguesa, a nossa mais valiosa herança identitária. De que forma, ao certo, poderá ele reverter para Português o brasileiro imposto na Fundação? Bem, isso será de sua própria iniciativa, quem somos nós para sequer sugerir (certo, uma simples ordem seca chegava) tal coisa a tão ilustre pessoa, desde que a sua atitude não seja meramente simbólica (ou teórica), como já sucedeu antes; o que decidir está perfeitamente decidido se não se ficar pela rama, pelas aparências, pela cosmética.

Ao contrário de uma estranha expressão que se pode ler na notícia, provavelmente por lapso, sejamos optimistas, não se trata de «salvar todas as consoantes da extinção»; uma formulação absurda, bem entendido. Não são todas as consoantes, porque isso seria impossível (e inútil e estúpido), evidentemente, e não faria o menor sentido; são apenas aquelas que — porque no Brasil não existem — foram selvaticamente abatidas pelo AO90. E não é de salvar todas as consoantes que se trata, o verbo é um pouco idiota (será ironia do articulista?), o que está em causa é repor uma ortografia eliminando a transcrição fonética do brasileiro que meia dúzia de académicos e dúzia e meia de políticos (além de uns quantos corruptos e vigaristas de outros ramos) impuseram a Portugal e pretendem impor a terceiros.

Segundo as próprias palavras de António Feijó, o “acordo ortográfico” é um “objectivo que não foi nem jamais será alcançado”. Esperamos do Presidente da Fundação Calouste Gulbenkian que honre o seu compromisso. Porque as palavras são isso mesmo: questão de honra.

Alguém dar a sua palavra é palavra de honra. As outras leva-as o vento.

António Feijó: com todas as letras, sem exterminar consoantes

 

Pedro Correia
24.12.2021, 09:00

 

Em semana natalícia, despolitizemos algum espaço de reflexão. Por isso hoje se destaca um intelectual verdadeiro, daqueles que não precisam de pôr-se em bicos de pés a soltar estridências para se fazerem notar. António Feijó acaba de ser eleito presidente da Fundação Calouste Gulbenkian. Pelos seus pares, em votação secreta e com efeitos a partir de Maio, mês em que cessa funções a actual titular, Isabel Mota.

Justa consagração para o pró-reitor da Universidade de Lisboa, com um percurso académico e literário que fala por si. Vai gerir a mais rica fundação do país, dotada com fundos próprios que ascendem hoje a 3,2 mil milhões de euros. Não falta quem a considere o verdadeiro Ministério da Cultura português, sendo também referência em áreas tão diversas como a educação, a ciência, a saúde e o ambiente.

António Maria Maciel de Castro Feijó já tinha assento desde 2018 no órgão máximo de gestão da Gulbenkian, como administrador não-executivo. Está habituado a cargos de decisão. Entre 2008 e 2013 dirigiu a Faculdade de Letras de Lisboa, onde é professor catedrático. Em 2014 assumiu a presidência do Conselho Geral Independente, que supervisiona o Conselho de Administração da RTP. Levou até ao fim o mandato de seis anos, deixando inequívoco o seu entendimento do que deve ser esta empresa sempre tão envolta em polémica: “O operador público de rádio e televisão não deve fidelidade a um governo, mas deve fidelidade aos contribuintes, àqueles que pagam a chamada contribuição audiovisual.”

Diplomado em Estudos Americanos e doutorado em Literatura Inglesa pela Universidade de Brown, nos EUA, onde viveu durante os mandatos presidenciais de Jimmy Carter e Ronald Reagan, é prefaciador de Agustina Bessa-Luís, especialista em Teixeira de Pascoaes, tradutor de Shakespeare e Oscar Wilde. Em 2016 venceu o Prémio Jacinto do Prado Coelho, atribuído pela Associação Portuguesa dos Críticos Literários, distinguindo o seu livro “Uma Admiração Pastoril pelo Diabo (Pessoa e Pascoaes)”, que mereceu insuspeitas palavras de elogio. Rui Ramos, no Observador, chamou-lhe “um milagre de erudição e subtileza”.

O recém-eleito presidente da Fundação Gulbenkian assume-se ainda “absolutamente contra” o acordo ortográfico que visava o impossível: unificar as diversas formas de escrever em português, objectivo que não foi nem jamais será alcançado.

“Temos uma tradição política iliberal de o Estado se arrogar uma série de decisões que não lhe competem. O Estado abstém-se de entrar em certos domínios da economia porque entende que não tem vocação para o fazer. Então porque há-de entrar nas consoantes mudas?”, declarou numa entrevista em 2012. Invocava um exemplo que bem conhece: “O inglês entre os EUA e a Inglaterra tolera grafias diferentes. Seria impensável para eles que a ortografia fosse homogeneizada. Nem num país nem noutro alguém presume que pudesse ser objecto de um acordo.”

O nosso idioma merece: há que salvar todas as consoantes da extinção.

 

António Feijó é o novo presidente da Fundação Calouste Gulbenkian

Administrador entra em funções a 3 de Maio de 2022, sucedendo no cargo a Isabel Mota, a primeira mulher a presidir ao conselho de administração da FCG.

 

Domingo
26 Dezembro 2021

O novo presidente do conselho de administração da Fundação Calouste Gulbenkian (FCG), em Lisboa, é António M. Feijó, que sucede a Isabel Mota, a primeira mulher a desempenhar as funções. O administrador não executivo da FCG, eleito por voto secreto numa reunião do conselho de administração plenário da Gulbenkian, começa a desempenhar as novas funções a 3 de Maio de 2022.

António M. Feijó é actualmente pró-reitor da Universidade de Lisboa, professor catedrático da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, director da Imprensa da Universidade de Lisboa e director não-executivo da Fundação da Casa de Mateus. Ex-director da Faculdade de Letras, foi também presidente do Conselho Geral Independente da RTP.

Doutorado em Literatura Inglesa e Norte-Americana pela Brown University, é mestre em Literatura Inglesa e Norte-Americana pela StateUniversity de Nova Iorque, nos Estados Unidos.

Tem publicações sobre literatura inglesa, norte-americana e portuguesa, bem como traduções e versões dramatúrgicas de Shakespeare, Thomas Otway e Fernando Pessoa, entre outros autores.

[Ambas as transcrições (integrais) são de notícia e de entrevista do semanário “Novo”. Fotografia de António Feijó de: Universidade de Lisboa. Destaques, sublinhados e “links” meus. Imagem de topo (recorte) de: FCG. Imagem de rodapé de: Wook.]


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