Este artigo do “Público”, assinado por um autor já aqui citado por diversas vezes, com vários textos transcritos na íntegra, segue — pelo menos, aparentemente — a mesma linha de consistência discursiva dos anteriores, se bem que denote alguns indícios de um inusitado pendor analítico, o que, dado o objecto em apreço (a aberração cacográfica brasileira, convém ter presente) e a sua implicação mais evidente, ou seja, a total e absoluta ausência de Ortografia quanto à matéria, não deixa de ser um pouco surpreendente e, se calhar, tremenda decepção ler um arrazoado técnico sobre a aberração que de Ortografia nada tem.
Vale, contudo, havendo um módico de paciência, pela explanação de um modelo de investigação linguística de cariz pedagógico (EILOS – Estudo sobre o Impacto na Linguagem Oral e na Sematologia – A090) e das respectivas (mais do que evidentes, mesmo a priori) conclusões.
A leitura do artigo vai muito bem, portanto, até que de repente o leitor esbarra nos estranhos dizeres do último parágrafo… e tudo parece desmoronar-se. Entendendo por “tudo”, nesta acepção, sem dramatizar excessivamente, a descoroçoante denegação em que o autor escorrega, não apenas em relação ao que é dito no miolo do texto mas também no tom (bravamente combativo), no conteúdo (claramente explanado) e na redacção (inteligentemente em crescendo) das suas publicações antecedentes no mesmo jornal.
A expressão (que assinalei na transcrição com sublinhado e três asteriscos) ***quando havia que ser prudente é “vagamente” assustadora; dado o contexto, referir-se-á aquela formulação ao “acordo” e, se assim for, recomendará apenas “prudência”, isto é, refazer, “corrigir” o AO90 existente ou que seja esgalhado outro AO, mas desta vez um bocadinho menos asqueroso do que o de 1990?
Diacho. Devo ter percebido mal. Pode lá ser!
Não pode, porque a ser essa a “ideia” então a frase pressuporia uma espécie de validação post-mortem do AO90. Significaria, trocado em miúdos, algo como “ah, aquilo tem montes de erros, mas prontos, assim com’assim, mais vale remendá-lo” do que deixá-lo continuar a ser um maltrapilho, um andrajo mental.
Não pode, porque a pessoa que agora se declara “longe de entrar nessa espécie de euforia que atribui todos os males da língua ao AO90” (olhe, sr. Pascoal, atribuo eu e atribuem outro tanto muitos simples como eu: mau Português é uma questão resolúvel, trocar a Língua por outra é que nunca), é a mesma figura que escreveu há apenas dois anos um texto com o seguinte, excelente título: «Acordo ortográfico? Revogar, claro!»
Não pode, porque se Pascoal agora fala em “factores de desestabilização” como se isso fosse um pecadilho menor do Tratado brasileiro no Ensino, anteriormente escreveu isto: «Deixei de acreditar no ensino sério do Português, desde a implementação do acordo ortográfico (AO90) nas escolas. Tenho algum respeito pela habilidade de espírito, argúcia e credulidade de quem ajudou a conceber esse acordo, mas uma admiração incondicional pela inteligência e sensatez de quem persiste em querer livrar-nos dele.»
Não, não pode mesmo. Há coisas que não enganam. Terei com certeza entendido mal.
Aliás, o excipit do presente texto — ainda que não literário, mas faz de conta, para variar — contradiz a própria contradição. Isto é, simplificando, como se diz na tropa, “primeira forma”: «Talvez agora possamos ter mais consciência de que nos encontramos no centro de um sistema linguístico que está a crucificar a própria língua. Não temos desculpa para não sabermos.»
Ah, assim sim. Não há desculpa, de facto.
Projecto EILOS: notas sobre o impacto do acordo ortográfico nas escolas
António Jacinto Pascoal
“Público”, 25 de Julho de 2021
Talvez agora possamos ter mais consciência de que nos encontramos no centro de um sistema linguístico que está a crucificar a própria língua.
Quando Primo Levi, o judeu italiano detido em Auschwitz, prestes a enlouquecer de sede, avistou uma estalactite, estendeu o braço para arrancá-la e sugá-la. Porém, um guarda deteve-o. Levi, por isso, perguntou: “Warum?”, isto é, “Porquê?”; ao que replicou o guarda: “Hieristkeinwarum”, que quer dizer “Aqui não existem ‘Porquês’”. Quando pensamos em coisas absurdas, fazemos geralmente esta pergunta. Depois de o Acordo Ortográfico de 1990 (AO90) ter passado a vigorar nas escolas, houve quem fizesse essa pergunta. Mas, quando muitos professores deixaram de ser testemunhas do absurdo para se tornarem consciências infelizes do fatalismo, o seu novo compromisso foi deixarem de fazer perguntas. Na verdade, quem perguntava nunca obtinha uma resposta simultaneamente transparente e documentada. Os defensores do AO90 fugiram sempre a explicações coerentes, tantas as pontas soltas do desastre a que chamam “acordo”, de que uma das consequências foi a de nunca ter produzido – e jamais poder vir a fazê-lo – uma unificação ortográfica.
O projecto EILOS (Estudo sobre o Impacto na Linguagem Oral e na Sematologia – A090) foi implementado na última semana de aulas (14 a 18 de Junho de 2021), na Escola Secundária de S. Lourenço, em Portalegre, com apoio da direcção escolar, dos alunos envolvidos e dos respectivos encarregados de educação, que contribuíram significativamente para tornar disponível uma série de dados de tratamento linguístico, merecedores de reflexão. EILOS, acrónimo de Estudo sobre o Impacto na Linguagem Oral e na Sematologia, é um exame linguístico pelo qual se pretendeu obter documentação técnica relativa a (1) alterações ou súbitas convulsões na oralidade (que poderão desencadear gradual mudança de paradigma oral), decorrentes da leitura, e a (2) desestabilização e irreversível desordem no plano semântico. A expectativa inicial seria a de uma amostra de cerca de 90 alunos, respeitantes a 4 turmas, contudo tal não foi possível, limitando-se por agora a amostra a 30 alunos, concernentes a 4 turmas (9.º ano, 11.º ano – curso profissional, 12.º ano de Humanidades (2 turmas). Longe da amostra ideal, convém sublinhar que a variação nos dados poderá não sofrer alterações de monta com o seu alargamento – espera-se estender a análise a mais turmas no próximo ano lectivo. Seria gratificante apercebermo-nos de uma investigação linguística similar noutras escolas do país, de modo a alargar a documentação e as anotações técnicas e conceber uma “unidade” das investigações, com todas as suas variantes (zona geográfica, faixa etária, proveniência socioeconómica, nível de ensino, etc.). Este estudo foi apresentado, na altura sem o tratamento de dados, em conselho de Departamento de Línguas. Podendo encerrar uma componente de contingência, ela será sempre residual, bastando testar em situações e locais diversos.
No caso particular do EILOS, os alunos foram submetidos a duas vertentes técnicas: uma bateria de vocábulos de leitura em sequência ternária (por exemplo, excerto/exceto/ excepto), sendo incluídos, amiúde, vocábulos grafados segundo a ortografia de 1945; um questionário de 5 perguntas, implicando a significação de pares de palavras parónimas (receção/recessão) e o reconhecimento ou não de ambiguidades sematológicas em frases como “E pronto, para a escola”.
Deu a surpresa de serem encontradas situações caricatas, tendências peculiares acentuadas, propensão para o emudecimento e apagamento de vogais pré-tónicas, mas, paradoxalmente, tendência para a prolação de vogais fechadas pré-tónicas a antecederem a sequência grafemática -ssão, por analogia decorrente da confusão gerada pela supressão da consoante muda (p ou c) na sequência -ção. Um reparo: a articulação dos vocábulos de grafia marcadamente pré-AO90 não constituiu casos de destaque no respeitante à articulação vocálica, se exceptuarmos a pronunciação, em boa parte das ocorrências, das consoantes mudas.Comecemos pelos grandes números: o preciosismo da concisão obsessiva do AO90, mutilando a consoante c que antecede o grafema t no vocábulo coletânea, gerou uma percepção emudecida da pré-tónica e, tornada muda. O vocábulo coletânea teve direito a duas entradas no exercício oral, em duas sequências ternárias, a saber: coletânea/colete/coleta e borboleta/coleta/coletânea. No primeiro caso, surgiram 22 ocorrências (73%) e, no segundo, 21 (70%), num total de 43 ocorrências da palavra lida como coltânea [kulɨtɐnjɐ].
O AO90, portador de uma falsa necessidade unificadora, armada com letra de lei, gerou a grosseira entropia nos vocábulos portadores de sibilantes ss e ç: esse é o caso registado relativo ao vocábulo recessão (confundido com receção) com 22 ocorrências (73%) de vogal em posição átona aberta (e), lendo-se recèssão [rɨsɛsɐ͂w̃]. Quanto ao gerador da confusão, receção, com omissão da consoante muda p, registaram-se somente 6,6% (2 ocorrências) com fechamento da pré-tónica, como em reç-ssão [rɨsɨsɐ͂w̃], o que parece validar a hipótese de este termo prevalecer e contribuir para o desconhecimento do seu congénere (recessão).
Uma situação semelhante ocorreu com os pares interceção/intercessão: o vocábulo intercessão passou a deter uma prevalência de prolação aberta na vogal átona, com 21 ocorrências (70%), como em intersèssão [ĩtɨɾsɛsɐ͂w̃]; por outro lado, interceção ocorreu 3 vezes (10%) com e mudo, exactamente como em intersessão [ĩtɨɾsɨsɐ͂w̃], resultado de ausência de sinal diacrítico de acentuação. Aconteceu, talvez por analogia, o mesmo fenómeno de abertura da pré-tónica em secessão, vocábulo com o qual os alunos (e não só) estarão pouco familiarizados, sobretudo se o não apreenderem nas lições de História ou no contexto de Memorial do Convento: o termo deu origem a 13 ocorrências (43% dos inquiridos), na forma oral secèssão [sɨsɛsɐ͂w̃].
Mas há mais: o vocábulo pré-AO90 concepção (de que resultam as palavras cognatas conceptualizar e conceptualização; sem esquecer a vocalização do p na semi-vogali, como em conceito), destituído da consoante muda p, foi sujeito a 3 entradas em sequências ternárias específicas (excreção/expressão/conceção; concessão/conceção/ concepção; Conceição/conceção/ concessão), tendo sido verificado um total de 32 ocorrências (10, 12, 10, respectivamente), em que o termo regista um emudecimento da vogal átona e, lida como concessão [kõsɨsɐ͂w̃]. Por sua vez, a congénere concessão obteve um total de 19 ocorrências (10, 9), com abertura da pré-tónica, exactamente como em concèção/concepção [kõsɛsɐ͂w̃]. A confusão é evidente.
Para abreviar, farei somente registo de alguns outros vocábulos atingidos pela obstinação simplista do AO90: o vocábulo coação (na grafia de 1945, coacção), numa única entrada no exercício, registou 14 ocorrências (46,6% dos inquiridos) com emudecimento da pré-tónica a, lido então como coâção [kuɐsɐ͂w̃]; espetador (forma actual de espectador) registou um total de 18 ocorrências (14 e 4), num dos casos o correspondente a 46,6% dos inquiridos, com emudecimento da vogal átona e (a segunda das três vogais), lendo-se esptador (como “aquele que espeta”), isto é, [ɨʃ͂pɛtɐdoɾ]; exceto obteve 9 ocorrências (30%), com fechamento da vogal tónica (como excêto, [ɨʃ͂setu]; da mesma forma, infeto (7 ocorrências, 23%), coleta (14 ocorrências, em duas entradas), correto (2 ocorrências, 6,6%), e afeta (6 ocorrências, 20%), sempre com o mesmo tipo de emudecimento da vogal tónica, beneficiaram da investigação precipitada de filólogos subordinados ao poder político. Seria fastidioso enumerar a vasta lista de palavras sujeita à barbaridade do bisturi manuseado no laboratório linguístico do AO90. Já não nos surpreende que um acento, destituído de funções, tenha permitido que 23 alunos (76,6%) pronunciassem introito como intrôito [ĩtɾoɨtu]. Estes são dados provisórios, mas não casuais.
Alguma perplexidade suscitam, igualmente, os resultados do plano semântico: 33% dos alunos não distinguem o significado de receção e recessão (e 43% conhecem um deles); 73% não distinguem o significado de concessão e conceção (10% conhecem um deles); 60% não distinguem o significado de intercessão e interceção (16,6% conhecem um deles). Para cada um destes pares de vocábulos há uma percentagem de alunos que articula os termos sem distinção: 40%, 33% e 46,6%, respectivamente. Em relação à frase “Ninguém mais para o Acordo Ortográfico”, 76,6% dos alunos não reconhecem a sua ambiguidade, sendo esse valor o de 63%, para a frase “E pronto, para a escola”.
Longe de entrar nessa espécie de euforia que atribui todos os males da língua ao AO90, tenho a convicção de que ele introduziu suficientes factores de desestabilização na língua portuguesa, quando havia que ser prudente***. Não me sinto agrilhoado ao latim e tenho consciência de que imensos vocábulos são falsamente dados como provindos directamente da língua dos romanos, quando, na verdade, deram entrada por via de castelhanismos. O novel vocábulo resiliência (dá um estudo de caso o deslumbramento com tal palavra), por exemplo, corresponde a um anglicismo de raiz latina. Porém, isso não me obriga a aceitar como pacífico o processo de deslatinização da língua, engendrado por académicos ditos linguistas, incapazes de prever o caos em que mergulharam a língua (que faria se tivessem o poder de o prever, perguntamo-nos), confiada entretanto a duas ou três normas gráficas. Já temos as provas. Podemos voltar a criá-las e proferir os respectivos diagnósticos. Talvez agora possamos ter mais consciência de que nos encontramos no centro de um sistema linguístico que está a crucificar a própria língua. Não temos desculpa para não sabermos.
António Jacinto Pascoal
[Transcrição integral de artigo de opinião, da autoria de António Jacinto Pascoal, publicado no jornal “Público” de 25 de Julho de 2021. Destaques, sublinhados e “links” meus.]