O busílis da questão, algo que na propaganda acordista passa por anátema amaldiçoado, é a fronteira que a língua brasileira, queiram ou não queiram, já atravessou: à semelhança do que sucedeu em relação ao Latim, com o Português, o Espanhol ou o Francês, por exemplo, a progressiva autonomização acabou por conduzir à inerente e inevitável independência; o fenómeno, salvas as devidas distâncias mas também consideradas as respectivas similitudes, é válido para as línguas assim como para os países. O Brasil adoptou o Português como língua-franca de 1500 em diante e, a partir do momento em que declarou a independência política, em 1822, o país acelerou também o processo de autonomização cultural terminando, a partir de finais do século XIX, por desenvolver de igual modo a sua independência linguística.
Ao invés do que sucedeu com a independência política, que foi súbita e rápida (e simbolicamente liderada por um filho do rei português, nem de propósito), a independência linguística resultou de um processo relativamente lento mas inexorável: paulatinamente, a língua brasileira afastou-se cada vez mais da sua matriz portuguesa e acabou por se transformar tão radicalmente que — por exemplo — qualquer português que diga alguma coisa num canal de TV brasileiro tem de ser legendado.
Tornou-se já virtualmente impossível fingir que um texto brasileiro está redigido em Português; será algo parecido, quando muito, mas ainda mais parecido com o Português é o Galego e afinal pouco diferem da nossa Língua o Espanhol ou o Italiano. Simples diferenças nominais ou ligeiras variações lexicais já não passam de mera bizarria, vulgar e extremamente frequente, no meio de uma floresta com todo um outro sistema comunicacional: além de outra semântica, outra sintaxe, outra semântica, outra prosódia, ou seja, por extenso, toda uma outra Gramática.
Os títulos de filmes ingleses e americanos no Brasil, além de apenas mais um pequeno pormenor, um galho de uma das árvores da floresta linguística (ou do bosque gramatical), são para qualquer português motivo de chacota, quando não de pura risota.
Não seria mau, portanto, que uma obtusidade anedótica como o AO90 servisse em exclusivo os fins para os quais foi inventado: promover os interesses económicos e geopolíticos do Brasil utilizando a língua brasileira como truque de legitimação expansionista, baptizando fraudulentamente essa língua alienígena como “português universal”; “português” de nome, é claro, e “universal”, sim, mas de um “universo” que não vai além das paredes do Palácio do Planalto e dos lisboetas Passos Perdidos.
A língua brasileira separou-se da Língua Portuguesa, então adeus, boa sorte, como sucede em qualquer separação apenas resta a uma das partes desejar à outra que tenha sucesso no seu caminho.
Seria bom, seria excelente, seria magnífico que não roubassem os gatunos de cá e de lá, neo-imperialistas e vigaristas, aquilo que foi por nós originalmente manufacturado e que usamos há séculos, essa nossa antiquíssima, riquíssima, sólida e honesta ferramenta, o cinzel com que escrevemos a História do futuro.
O AO90, Jorge Amado ou afinal Santana tinha razão
A quimera da unificação ortográfica foi, desde sempre, uma das bandeiras desfraldadas pelos apoiantes do AO90. Mas basta ler Jorge Amado para corroborar a tese de que a maravilhosa língua unificada é tão real quanto os unicórnios voadores.
João Esperança Barroca
26 de Março de 2021, 17:00——————–
“O AO90 é algo como espetar no chão duas estacas, uma do lado de cá e a outra do lado de lá do Atlântico, esticar entre elas uma corda e assim tentar bloquear a natural deriva dos continentes, algo que ocorre desde os primordiais tempos da Pangeia. Os continentes afastam-se uns dos outros como as Línguas se distanciam entre si. Tentar perverter (ou deter) o curso natural das coisas não é só tremenda estupidez — é impossível. E ainda bem.”
Do blogue Apartado 53, 30-01-2021——————–
“Acordo Ortográfico, não! Começámos a tirar consoantes às palavras, quando, no Brasil, elas continuam a existir. É ridículo, não é nenhum acordo, é uma grande aldrabice! Sou absolutamente contra. Tenho muita esperança de que se consiga corrigir a grande borrada que foi essa invenção.”
Lena d’Água, cantora, vencedora do Prémio José Afonso 2020——————–
“Júlio Silveira, um dos fundadores da editora Casa da Palavra, que dirigiu a Nova Fronteira e é curador do LER Salão Carioca do Livro, conta que sempre perguntam se os livros que ele vende são escritos em português ou em ‘brasileiro’. Ele responde que são escritos na língua portuguesa do Acordo Ortográfico.”
“Não se sabe onde Silveira ou O Globo foram desencantar tal língua, porque ela simplesmente não existe. É uma ficção absurda, inventada por lunáticos.[…] Língua portuguesa do Acordo Ortográfico? Nem como anedota. As culturas portuguesa e brasileira talharam o idioma à sua medida. É por isso que o romance Wuthering Heights1, de Emily Brontë (1818-1848) se chama por cá Monte dosVendavais e no Brasil, O Morro dos Ventos Uivantes (que é, aliás, a tradução dada pelo tradutor automático da Google). Ou que o filme de Robert Wise The Sound OfMusic (1965) ganhou por título em Portugal Música no Coração e no Brasil foi titulado como A Noviça Rebelde. Isso pode ser comprovado em milhares de livros e filmes, onde cada tradução segue o caminho que lhe ditam os costumes e coloquialismos locais.”
Nuno Pacheco, no jornal Público, em 11-02-2021——————–
A quimera da unificação ortográfica, a maravilhosa língua unificada foi, desde sempre, uma das bandeiras desfraldadas pelos apoiantes do AO90. Essa unificação, imprescindível à expansão e difusão do português, abriria, diziam eles, as portas da ONU, por onde a língua entraria, triunfante, como língua de trabalho, a par do inglês, do francês, do russo, do chinês, do espanhol (castelhano, mais propriamente) e do árabe.
Nuno Pacheco já afirmou um sem-número de vezes que essa língua não existe e como tal, é impossível escrever nela. Por razões que não vêm agora ao caso, o autor deste escrito teve necessidade de reler, há pouco tempo, a obra O Gato
Malhado e a Andorinha Sinhá do escritor brasileiro Jorge Amado. A versão consultada foi a 11.ª edição, de Outubro de 2005 (em tudo igual aos excertos existentes nos manuais escolares), das Publicações D. Quixote, e essa leitura obriga-nos a corroborar a tese de que a maravilhosa língua unificada é tão real quanto os unicórnios voadores.
Vejamos, então, vários factos (e também alguns fatos de que falava Santana):
– praticamente no início da obra, na página 16, encontramos a interrogação “Por que o bobo faz questão de dizer que estava passando ali por acaso quando todos sabem não existir tal casualidade e sim propósito deliberado?” Na variante europeia do português grafaríamos porque e tolo ou parvo (em vez de “bobo”). A mesma situação com o advérbio interrogativo surge ainda na página seguinte no excerto “Mas por que não falar também de inegáveis qualidades?”;
– no excerto da página 18 “… suicidou-se, enforcando-se nos ponteiros, por não mais suportar a lentidão da Manhã…” o advérbio (de quantidade, intensidade ou grau) no português europeu surgiria depois do verbo “suportar”;
– na página 19, lemos “… pouco afeita a regras e códigos, ela o fazia esquecer por alguns momentos a suprema chateação da eternidade e a bronquite crônica.” Este excerto em Portugal seria escrito, talvez, assim: … pouco habituada a regras e códigos, ela fazia-o esquecer por alguns momentos o supremo aborrecimento da eternidade e a bronquite crónica;
– em português europeu, o excerto da página 21 “A Manhã balança a cabeça : o Vento não pensa em casar coisa nenhuma, são outras suas intenções, como se dizia naquele tempo de atraso e cafonice” poderia ser escrito A Manhã abana a cabeça : o Vento não pensa nada em casar, são outras as suas intenções, como se dizia naquele tempo de atraso e pirosice.”;– na mesma página a frase interrogativa “Os relógios, todos eles, parados à espera: os galos, sem exceção, roucos de tanto cantar anunciando o Sol e cadê o Sol?” poderia surgir como Os relógios, todos eles, parados à espera: os galos, sem excepção, roucos de tanto cantarem anunciando o Sol e onde estava ele?;
– na página 25, encontramos “… ela a escutara…” (em português europeu, seria ela escutara-a, pois, nesta construção frásica, o pronome surge depois do verbo);
– na página 30, lê-se “Mamãe”, correspondente ao termo Mamã; na mesma página deparamo-nos com “… os cachorros divertiam-se saltando sobre a grama.” Em Portugal esta última palavra seria substituída por relva ou erva;
– na página 31, pode ler-se “Os cachorros o haviam procurado para com ele correr e saltar”, excerto que mudaria para Os cachorros haviam-no (tinham-no) procurado para correr e saltar com ele; ainda nesta página, surge-nos “… xingando-‑lhes a família, …”, que seria ofendendo-lhes a família no português europeu;
– na página 35, lemos “Olhou espantado, por que fugiam todos se era tão belo o parque naquela hora da chegada da Primavera.” Na versão europeia do português, grafaríamos obviamente porque, situação que se repete na página 50 em “… e — ninguém sabe por que — duvidava da veracidade das histórias.” e na página 55 “… a Andorinha, cabeça dura, não compreende por que cometerá um pecado se conversar com o Gato”;
– na página 41, deparamos com “Ela o insultou e ele a vai matar, pensou o velho Cão Dinamarquês.” Em português europeu, diríamos: Ela insultou-o e ele vai matá-la;
– na página 42, podemos ler “Não porque a Andorinha o houvesse tachado de mau e sim por tê-lo chamado de feio, e ele se achava lindo, uma beleza de gato.” É óbvio que escreveríamos algo assim: Não porque a Andorinha o houvesse (tivesse) acusado de ser mau e sim por lhe ter chamado feio, e ele achava-se lindo, uma beleza de gato. Na mesma página, o Gato pergunta: “— Tu me achas feio? De verdade?” Um gato nacional perguntaria: — Tu achas-me feio? A sério?
– na página 50, lemos “Ou melhor: o fato dela nunca ter conseguido conversar com o Gato.” Temos de dar razão a Santana Lopes, pois, por muito que nos custe, este fato é igual a facto;
– a expressão “… a Andorinha não houvesse jogado calhaus enormes bem no crânio do gato…” na página 53, seria … a Andorinha não houvesse (tivesse) atirado pedras enormes à cabeça do gato;
– na página 61, está presente este excerto “Devo concluir que o Gato Malhado, de feios olhos pardos, de escura fama de maldade, havia se apaixonado?” No português europeu colocaríamos o pronome reflexo a anteceder o verbo haver;
– na página 62, encontramos “Não sou tão tolo a ponto de achar-me capaz de entender o coração de uma mulher, quanto mais de uma andorinha.” É claro que utilizaríamos o pronome pessoal antes do verbo achar e corrigiríamos “quanto mais” para quando mais;
– na página 65, podemos ler “Só o Gato não dava nenhuma importância ao fato.” Mais uma vez, não estamos a falar de produtos da indústria têxtil. Santana Lopes tem razão pela segunda vez, o que não abona em favor do autor destas linhas. Agora fato é igual a facto. (Às vezes, somos enganados quanto à origem dos tecidos. Olá, Francisco Miguel Valada e Manuel Monteiro);
– na página 66, lemos “Gato Malhado pára embaixo da árvore, …” No português europeu, grafaríamos debaixo;
– A fala da Andorinha “— Puxa! Que convencido! É a pessoa mais feia que eu conheço. Junto de você minha madrinha Coruja é prêmio de beleza…”, na página 68 converter-se-ia em — Arre! (Poça!) Que convencido! És a pessoa mais feia que eu conheço. Ao pé de ti a minha madrinha Coruja ganha o prémio (concurso) de beleza;
– na página 70, encontramos “O Gato ri e trata de sumir entre as moitas de capim que crescem por ali.” Esta frase transformar-se-ia em O Gato ri e resolve desaparecer entre as moitas de ervas que crescem por ali;
– O excerto do Parêntesis Crítico “Imperdoável, sobretudo, porém, o fato criminoso evidenciado no primeiro quarteto do aludido soneto…” na página 93 volta a não fazer referência à indústria das confecções, comprovando, mais uma vez, a justeza do dogma de Santana Lopes e atirando a reputação do autor destas linhas para a rua da amargura;
– na página 97, a frase “O Gato sentou sobre um galho…” seria em português europeu O Gato sentou-se num ramo (galho)…;
– a frase “No derradeiro dia do Outono, dia úmido e enevoado…” teria no português europeu a grafia húmido;
– para finalizar, na página 107, encontramos “O reverendo Padre Urubu veio de um convento distante para celebrar a cerimônia religiosa.” Na variante europeia do português poderíamos ter O reverendo Padre Abutre veio de um convento distante para celebrar a cerimónia religiosa.
Propositadamente, deixámos de fora a expressão “metido a besta” na página 50, a qual seria provavelmente substituída por armado em parvo ou pretensioso, tendo em conta que pode ser utilizada para caracterizar quem emite opiniões sobre assuntos que pouco domina. (Agora facto é igual a fato. E, como na adição, a ordem dos factores é arbitrária).
Na linguagem do quotidiano (cotidiano do lado de lá do Atlântico) ocorre um número significativo de diferenças. Assim, temos, entre outros: aluguer / aluguer; cancro / câncer; libertar / liberar; planear / planejar; utilizador / usuário; dobrar / dublar; maquilhagem / maquiagem; esclavagista / escravista; desenhador / desenhista; registar / registrar; camião / caminhão; comboio / trem; autocarro / ônibus; nave espacial / espaçonave; casino / cassino; aterrar / aterrissar; frigorífico / geladeira; castanho / marrom; casa de banho / banheiro; passadeira / faixa de pedestre; carteirista / batedor de carteira.
Pode, por isso, o leitor, facilmente, no Brasil, ouvir ou ler frases como:
a) — Isabel, chama o bombeiro para consertar a descarga da privada.
b) — Meu marido me trata como se eu fosse uma caçapa de sinuca.
Em Portugal, um brasileiro arregalará os olhos perante uma frase como: Saí da bicha para ir beber uma bica e depois fui comprar um par de peúgas.
Na editora Publicações D. Quixote, a obra Wuthering Heights, de Emily Brontë, surge com o título O Alto dos Vendavais.
Na área do cinema, como não podia deixar de ser, acontecem situações idênticas, como se pode observar nas imagens que acompanham este escrito.
João Esperança Barroca – Professor
Fifty Shades of Grey, Sam Taylor-Johnson, 2015 Edições brasileira e portuguesa do filme de Tarantino Inglourious Basterds
Público
@ 2021 PÚBLICO Comunicação Social
https://www.publico.pt/2021/03/26/culturaipsilon/opiniao/ao90-jorge-amado-afinal-santana-razao-1956071
(nos comentários a este artigo, os agentes do costume papagueiam os “argumentos” do costume)
[Transcrição integral de artigo, da autoria de João Esperança Barroca; jornal “Público” de 26 de Março de 2021, (com algumas adaptações técnicas. Destaque e “links” meus. Imagem de topo: D. Pedro I do Brasil/D. Pedro IV de Portugal; copyright: Pedo By Unidentified artist; after John Simpson (1782–1847) – maximum zoom level, Public Domain, Link]
Muito obrigado por ter divulgado e ter comentado este meu texto.
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De nada! É sempre um prazer reproduzir os seus textos sobre o AO90 e com isso, modestamente, saudar a sua coerência.
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Grato, mais uma vez.
O AO90 é um quisto. Tento ajudar na sua remoção. Daí a coerência, incomparavelmente menos expressiva que a sua.
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Mensalmente, também “atiro” contra o AO num jornal aqui da cidade (Tomar).
Se tiver curiosidade, posso passar a enviar-lhos.
Só preciso de um endereço.
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Muito agradecido.
Tem o endereço de email na página de contactos: https://cedilha.net/ap53/about/
ap53@cedilha.net
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