Tapar o Sol com as peneiras

Periodicamente, com a regularidade de um pêndulo, salta a ingente questão das datas e dela invariavelmente resulta a seguinte conclusão (ou relação de causa e efeito): havendo discrepâncias na datação dos documentos legais que envolvem o AO90, então esses documentos são ilegais e, por conseguinte, o próprio AO90 “não está em vigor”. Fantástico raciocínio: o facto de o “acordo” estar em vigor não interessa para nada,  o que interessa é que as datas estão erradas, são discrepantes, irra, não valem um caracol — e por conseguinte o AO90 afinal não está em vigor.

Em suma, a colossal aldrabice do todo acordista é filosoficamente trocada pela muito mais maneirinha e parcelar objecção quanto aos carimbos nos respectivos “instrumentos” de adesão e de ratificação. Há até quem, decerto imbuído de um incrível espírito de minúcia — característica distintiva dos chamados “picuinhas” — , vá mesmo ao mirabolante ponto de mui doutamente escarrapachar em texto (e exarar através de paleio) que, nada mais, nada menos, na verdade “o acordo ortográfico não está em vigor”.

Não se restringindo à vigarice única das datas erradas (os “quandos”), a mesma lógica da troca do essencial pelo acessório inclui uma outra, que parece ser ainda mais importante: que países da CPLP, ao certo, subscreveram o AO90 e, destes, quais ratificaram (os “quais”) o 1.º e o 2.º protocolos. Amiúde, seguindo a mesma estratégia das miudezas em vez do frango (ou de “tudo ao molho e fé em Deus”), alguns estudiosos colocam sérias dúvidas sobre as assinaturas físicas dos “negociadores” (os “quens”) que efectivamente subscreveram aquela fraude abominável.

Se tivéssemos de baptizar (mas felizmente não temos) tal estratégia de abordagem pela via administrativa (e burocrática) em detrimento da luta aberta e frontal, então poderíamos inventar adaptando (a condizer), para designar o fenómeno, o apelido do Ministro Iraquiano da Informação: Sahhafismo.

Epítome da vacuidade (e, digamos, um bocadinho lírico), Mohammed Saeed Al-Sahhaf vai fazendo escola nos areópagos nacionais — geralmente apinhados com umas 6 ou 7 togas circunspectas — e fazendo o seu caminho de pesadíssima nota de rodapé num brutal calhamaço académico ou na ficha técnica de uma ou outra sebenta electrónica.

O Sahhafismo serve, no caso, como respaldo da dita estratégia , dando cobertura (digamos assim) não apenas à questão das datas e ao problema das firmas mas também às objecções sobre “incongruências e contradições” presentes no AO90.

Claro que não está em causa que — a talhe de foice ou só para variar — se puxe desse tipo de argumentário. Tais vigarices menores não são nada em relação à questão maior (enorme, gigantesca) mas é um bacadinho parvo, digamos, matraquear no acessório em detrimento do essencial, isto é, torna-se absurdo atirar a minudências em vez de apontar toda a artilharia (e a Marinha de guerra e a Força aérea) ao “acordo” como um todo: todo vigarista, todo aldrabão, todo mentira.

Fingir que “o acordo ortográfico não está em vigor”, alegando em suporte da tese umas assinaturas nuns papeis, é como Sahhaf garantir, com veemência e cagança, enquanto os tanques americanos ocupam Bagdad, que está tudo bem, nada de grave se passa no Iraque, a situação está perfeitamente controlada pelas gloriosas tropas de Saddam Hussein.

Um bom exemplo brasileiro e mais datas para duvidar da validade do Acordo Ortográfico

Nuno Pacheco, “Público” 12..12.19

 

Se há obras que transcendem o seu estatuto fundador e são já património universal, Grande Sertão Veredas é uma delas. O seu autor, João Guimarães Rosa (Brasil, 1908-1967), era obcecado “pela integridade textual dos seus livros”, como recorda a editora Companhia das Letras, que acaba de lançar em Portugal nova edição desta obra. Por isso, resolveu adoptar (e di-lo na nota introdutória) “como referência a segunda edição [Agosto de 1958] com a rubrica ‘texto definitivo’”, respeitando “o critério básico de diminuir ao máximo as diferenças com a segunda edição de 1958, quando se fixou a fisionomia textual do romance.”

Explicando melhor: “O texto foi estabelecido de modo a preservar a expressividade de sinais diacríticos, hifenização e outros pormenores morfológicos e ortográficos na aparência desimportantes, mas que se destacam no sistema polifónico do livro.” Daí que, embora “êle” tenha passado com os tempos (e também no livro) a “ele”, “vôo” a “voo” ou “idéia” a “ideia”, se tenham mantido grafias como “gemêsse”, “umbùzeiro”, “urubú” ou “buritís”. Registe-se que, sendo a edição feita em Portugal (da editora brasileira aqui sediada), tanto a nota introdutória como a longa cronologia que fecha o livro e a respectiva lista de fontes respeitam a ortografia portuguesa de 1945 (ainda em vigor por lei). Que diferença com a recente edição d’A Menina do Mar, “atualizando” à força o texto de Sophia!

Já que falamos no Brasil, e no Acordo Ortográfico (que tenham paciência, ou virem a página, os que já dão este assunto por encerrado), é bom recordar que no Brasil sempre houve, e há ainda, resistência ao dito “acordo”. Manifestaram-se contra ele, a seu tempo, figuras como André Nogueira, Caetano Veloso, Carlos Heitor Cony, Ferreira Gullar, Gregório Duvivier, Hélio Schwartsman, Ivan Lins, João Paes Loureiro, João Ubaldo Ribeiro, Jorge Amado, Maria Lúcia Lepecki, Millôr Fernandes, Nei Leandro de Castro, Paulo Franchetti, Pasquale Cipro Neto, Sérgio de Carvalho Pachá, Sidney Silveira ou Walnice Nogueira Galvão. Ainda há pouco, no Observador (de 22/9), o jornalista brasileiro José Augusto Filho escreveu: “O Acordo Ortográfico de 1990 [que ele atribui ao “lulopetismo” – de Lula e do PT] é um falhanço total. Ele em nada tem facilitado a integração política e económica entre os estados membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP). Bem ao contrário, tem antes servido a alimentar nacionalismos e ressentimentos. […] Da forma que foi conduzido, o Acordo serve antes para enfraquecer a língua de Camões do que para disseminá-la. Quanto aos ganhos políticos e económicos decorrentes, foram até agora praticamente nulos.”

“Querem datas giras para duvidar da validade do Acordo Ortográfico? Aqui vão algumas”, 8/8/19) já tínhamos visto que as datas apresentadas para sancionar a dita “legalização” do AO90 em Portugal, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe não batem certo nos documentos que as registam (enquanto os depósitos no MNE português não forem vistos por uma entidade independente, permanece a dúvida: houve ou não manipulação de dados?).

Ora o mesmo sucede com o Brasil, a maior potência envolvida neste duvidoso negócio. O Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE) português, tutelado por Augusto Santos Silva, deu publicamente, num Direito de Resposta enviado ao PÚBLICO (e publicado em 28/7), as seguintes datas (sic): “O Brasil depositou o instrumento de ratificação do Acordo Ortográfico a 30 de abril de 1996, o instrumento de ratificação do Protocolo Modificativo a 15 de agosto de 2002 e o instrumento de ratificação do Acordo do Segundo Protocolo Modificativo a 12 de junho de 2006.” Do lado brasileiro, o que temos? O texto do AO (de 1990) foi aprovado no Congresso Nacional como “projecto de decreto legislativo” em 1992 (mas só publicado no Diário do Congresso em Setembro de 1993); já como Decreto Legislativo n.º 54, o Congresso aprova-o em 18 de Abril de 1995 (está no Diário Oficial de 20/4/95); e aprova também, mas em 12 de Junho de 2002, o primeiro protocolo modificativo. Até aqui, poderia bater certo com as datas do MNE, caso se confirmem os respectivos depósitos. Mas depois tudo se atrapalha.

Num só dia, 29 de Setembro de 2008, Lula da Silva assina quatro decretos relativos ao AO: o 6583, promulgando-o (“considerando que o Acordo entrou em vigor internacional em 1.º de janeiro de 2007, inclusive para o Brasil, no plano jurídico interno”, dá uma data diferente para depósito do instrumento de ratificação: 24 de Junho de 1996, quando o MNE diz 30 de Abril); o 6584, promulgando o primeiro protocolo; o 6585, promulgando o segundo protocolo; e o 6586, obrigando os livros escolares a usarem já a nova grafia a partir de 2010 (mais tarde, Dilma Rousseff prolongará até Dezembro de 2015 o uso simultâneo das duas normas). Uns meses depois desta “maratona” legislativa, o Diário Oficial da União revela que haverá um apoio de meio milhão de reais (486.696, para sermos exactos) à edição de um Vocabulário Ortográfico a editar pela Academia Brasileira de Letras, para distribuição gratuita a escolas, bibliotecas, etc., com uma tiragem de 10 mil exemplares. E em Setembro desse mesmo ano de 2009 são dados mais 269.680 reais a um festival musical inspirado no “acordo ortográfico”.

A correria a que Lula se entregou em 2008 tem uma origem próxima: Marcos Vinicios Vilaça, académico desde 1985, tinha chegado à presidência da Academia Brasileira de Letras (ABL) em 15 de Dezembro de 2005, para o biénio 2006/2007. Apadrinhado por José Sarney (que foi o grande impulsionador do Acordo Ortográfico nos anos 1980-90) e com um gosto especial pela projecção mediática, nomeou como seu assessor um jornalista de nome Antônio Carlos Athayde para garantir tal projecção. E esse assessor teve, um dia, uma ideia: descobriu que o Acordo Ortográfico estava a adormecer numa gaveta (de onde muita gente, em Portugal e no Brasil, confiava que nunca saísse), e disse a Vilaça: “Meu presidente, eu tive uma ideia que não vai tirar mais a ABL da mídia. Nós vamos promover a unificação ortográfica.” Ora no mesmo ano em que Vilaça entrara na presidência da ABL, também José Sócrates chegara a primeiro-ministro de Portugal. Com Lula na Presidência do Brasil desde Janeiro de 2003, foi só juntar a ambição de ambos com o desiderato pessoal de Vilaça e Athayde: um primor!

Voltando aos decretos de Lula da Silva. As datas que ele refere nos seus decretos não batem certo com as que o MNE dá por oficiais. Lula escreve que o documento inicial do AO foi depositado em 24/6/1996 e o MNE diz que foi em 30/4/1996, dois meses antes (num e noutro caso, ainda na presidência brasileira de Fernando Henrique Cardoso); Lula diz (decreto 6584) que o primeiro protocolo modificativo foi depositado em 3/9/2004, enquanto o MNE fala em 15/8/2002 (a ser assim, não seria durante a presidência de Lula, mas sim de Fernando Henrique); e, por fim, Lula diz (decreto 6585) que o documento referente ao segundo protocolo foi depositado em 20/10/2004, quando o MNE português refere, explicitamente, 12/6/2006. Nenhuma das datas coincide.

Pior: se nos dois primeiros casos (AO e primeiro protocolo), Lula refere a aprovação no Congresso Nacional, já no que respeita ao segundo protocolo diz apenas que “foram cumpridos os requisitos”. Mas no decreto 6586 (o quarto desta maratona) esclarece, afinal, que tal protocolo foi “internalizado pelo Decreto n.º 6585 de 29 de setembro de 2008”. Ou seja, nesse mesmo dia, e pelo decreto anterior, mas sem ir ao Congresso.

Ora a ida ao Congresso era obrigatória por lei, como ele bem sabia. Mas nesse dia não quis saber. Lá diz o Decreto Legislativo n.º 54, de 1995 (e é confirmado nos posteriores): “São sujeitos à apreciação do Congresso Nacional quaisquer atos que impliquem revisão do referido Acordo [Ortográfico].” Quaisquer actos! Mas que importava? Estava-se em plena euforia do quero, posso e mando. E deu no que deu.

Recapitulando, com as datas do texto anterior: se Portugal (diz o MNE) só ratificou o segundo protocolo em 2009, a 13 de Maio; se de São Tomé não se conhece registo de que tal protocolo tenha sido sequer ratificado; se Cabo Verde, em Dezembro de 2009, ainda estava a pensar notificar o MNE, “com a urgência possível”, da sua ratificação interna; e se o Brasil fugiu à lei não levando o segundo protocolo ao seu Congresso Nacional, como é possível afirmar (como se lê em notas, avisos e decretos) que o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa “entrou em vigor, a nível internacional, em 1 de janeiro de 2007”? Não é claro que estamos perante um embuste?

Nuno Pacheco

[Transcrição integral (incluindo “links”) de artigo, da autoria de Nuno Pacheco. “Público” 12..12.19]

Nota: a reprodução deste texto, como sucede com todos os aqui transcritos, tem por finalidade única a constituição de acervo documental sobre tudo aquilo que, segundo critérios meus, interessa ou diz respeito ao chamado “acordo ortográfico”.


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