«Um fenómeno relativamente recente, surgido com a vulgarização da Internet e em especial desde que foi inventado o conceito de “rede social”, é o das “causas de consumo”. Para haver “causas de consumo”, evidentemente, é necessário que existam “consumidores de causas”. São estes os que se abastecem periodicamente de (mais) uma causa, a qual juntam a outra ou a outras igualmente do seu agrado, por assim dizer, ou usando a nova para substituir uma que já não agrada (isto é raro mas acontece), que passou de moda ou que por algum outro motivo se extinguiu. Há consumidores para toda e qualquer causa, assim como há causas para todos os gostos, há as apetecíveis para espíritos mais combativos, as que encaixam que nem uma luva em perfis mais para o conservador ou no seu oposto diametral, há umas causas mais fofinhas e outras mais rijas e farfalhudas, há as causas cutchi-cutchi e as que têm imenso salero, enfim, isto das causas é uma alegria, uma causa por dia nem sabe o bem que lhe fazia, há por aí causas a granel, meta lá mais uma no bornal (era para rimar com “granel” mas não deu, ora bolas, diz que ele não há cá “bornel”).» [“Uma história (muito) mal contada” VI]
«Ilustremos o paradigma (ou axioma, vá) com um caso flagrante de “consumidora de causas” que aterrou de pára-quedas na ILC-AO: fazia ela então uma campanha chamada “destrua as ondas, não as dunas” (acho que era qualquer coisa assim, se não era isto exactamente era algo igualmente exótico), até tinha um “blog” sobre a matéria (seja lá isso o que for), até tinha um grupo no Facebook (olha, mas que original, hem, grande surpresa, não estava nada à espera) e até tinha, por fim, uma “ideia” para propor à ILC: ela faria campanha pela ILC e, em troca, a ILC fazia campanha pelas dunas…» [“Uma história (muito) mal contada” VI]
«Contrastar o conceito de inactivismo com a imensa, radical, total diferença do seu oposto será talvez um modo eficaz de demonstrar ambos em simultâneo: o verdadeiro activismo (cívico) resume-se a não ceder, não conceder, não desistir e, sobretudo, fazer algo — por pouco que seja — para que ao menos o que se pretende não esmoreça e que se não conceda ao inactivismo um minuto de tréguas, um milímetro de tolerância, um só átomo de crédito.» [Inactivismo (2)]
Os curiosos protagonistas do activismo verde
Revista “Sábado”, 28.07.2018
Maria Henrique EspadaHá “associações” que não passam de páginas de Facebook, ligações ao BE, grupos dentro de grupos e até uma comunidade pelo sexo livre nos protestos contra o furo de Aljezur. E há movimentos com outra estrutura que admitem que isto põe um problema de credibilidade aos ambientalistas.
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Alentejo Litoral pelo Ambiente. É um dos promotores da manifestação de 14 de Abril, em Lisboa, “Enterrar de vez o furo, tirar as petrolíferas do mar”, e primeiro signatário da carta aberta a pedir a demissão do ministro do Ambiente. Ora, o que é o ALA? Não tem site, apenas uma página de Facebook gerida por Fátima Teixeira, que, na sua própria página de Facebook indica gerir ainda outra página, a Plataforma Transgénicos Fora, e trabalhar no Tamera – a comunidade alternativa do Sudoeste Alentejano, que, no seu site, no segmento “Investigação”, a par da Terra Deva (“ecologia espiritual”), exibe também referências à “sexualidade como poder sagrado”, “sexualidade e parcerias livres”, e conceitos mais difíceis de traduzir a leigos (“Ashram Político”, “Círculo das Pedras”, “Marisis”). Fátima Teixeira esteve a 21 de Abril a representar o ALA no debate Ainda é possível Parar o Petróleo?, em Vila Nova de Milfontes. E o Tamera, por sua vez, também foi um dos movimentos promotores da manifestação de dia 14.
Contactada a página de Facebook do ALA, quem respondeu afinal foi Eugénia Santa Bárbara, que em 2017 participou no protesto na marginal de Sines em que cerca de 10 pessoas se pintaram com tinta de choco para “simular um derrame de petróleo” e dizer não ao furo. Acabou por não ser possível o contacto (nunca por falta de disponibilidade da SÁBADO), e apenas ficou claro numa mensagem que o protesto de 7 de Julho, um cordão humano nas praias contra o furo, estava a ser organizado por outras pessoas, “os movimentos e organizações apoiam e divulgam”. Em resumo: o ALA é uma página de Facebook, com alguma ligação ao Tamera, e não parece ter corpos sociais nem foi possível saber se são 10 ou 100. E pelos vistos só deu o nome.
Outro grupo: o Tavira em Transição (apenas página de Facebook) apresenta-se como um movimento comunitário que promove a transição para um futuro mais sustentável: surgiu em 2011 “aquando da reunião de alguns cidadãos que, sensíveis às mais variadas questões, problemáticas e soluções” dão início a uma “iniciativa de transição”. Há vários vídeos de cânticos do Tavira em Transição postados no YouTube por Ângela Rosa, que surge associada ao movimento e que se apresenta assim, numa outra página (Orgânica Shanti): “Mais o André, estudaram medicinas alternativas, facilitaram workshops Vive o Bem, Caminhadas Meditativas e contribui para a BK [presume-se que seja o movimento religioso Brahma Kumaris]. E que respondeu ao email da SÁBADO em que se questionava sobre os corpos sociais, quem os dirige e quantos são, explicando que são “um movimento informal de cidadãos activos”.
“As nossas acções são sustentadas na base da economia de dádiva, os cidadãos disponibilizam os seus talentos e ajuda e raramente recorremos ao uso de dinheiro. Somos um grupo de pessoas de várias nacionalidades e várias idades”, sem especificar quantas e como se organizam.
O colectivo dissolvido
Na lista dos protestos também consta o Coletivo Clima (o nome segue o acordo ortográfico), mas é difícil encontrá-lo, até porque já acabou. A organização não tem site, apenas, e de novo, uma página de Facebook, cuja última publicação, de 29 de Abril, diz: “Passaram dois anos de actividade e o Coletivo Clima desenvolveu nesse tempo cooperação próxima e conjunta com o Climáximo. Agora passámos a integrar essa organização, dando continuidade ao activismo.” Estranhamente, apesar de se ter auto-extinguido, um mês depois, o Coletivo Clima ainda foi um dos subscritores da carta aberta a exigir a demissão do ministro. E continua a surgir na página da PALP, Plataforma Algarve Livre de Petróleo, como membro de pleno direito. Contactado, o Coletivo Clima explicou por email: “A assinatura do comunicado de Maio deveu-se a alguma delação no tempo que é própria destes processos decisórios em plataformas de associações – a divulgação pública ultrapassou em algumas semanas a tomada de decisão sobre essa assinatura.” Extinguiram-se, mas a assinatura perdura.Por sua vez, o Climáximo, no qual o Coletivo Clima se dissolveu, tem página na Internet, embora não seja possível perceber de forma directa quem o dirige ou se tem corpos sociais organizados. Em regra, nas acções públicas em que participa o Climáximo, quem surge como porta-voz e activista ambiental é João Camargo, também dirigente do Bloco de Esquerda (pertence à Mesa Nacional). Escreve no site Esquerda.net (do BE) sobre temas ambientais, onde são também noticiadas as acções do Climáximo, fechando o ciclo. De resto, algo idêntico se passa com o movimento Peniche Livre de Petróleo, outro subscritor da manifestação de 14 de Abril contra o furo – como porta-voz, costuma surgir Ricardo Vicente, também próximo do Bloco (também escreve no Esquerda.net, desde 2014). A resposta atrás referida do Coletivo Clima (agora Climáximo), vinha aliás assinada por Paula Sequeiros, também do BE (escrevia e fazia traduções no Esquerda.net e foi candidata autárquica no Porto). Tem ainda participações habituais em acções do BE pela igualdade de género e contra a homofobia e contribuiu para a Rede Anticapitalista.
Aparece ainda, a assinar protestos vários, a comunidade Salvar o Clima, Parar o Petróleo, que parece surgir como uma manifestação, com esse título, em 2016, e tem agora site (nenhuma referência a quem o dirige ou integra) com um email e uma ligação para uma página de Facebook, onde partilha de forma sistemática publicações do Climáximo e de João Camargo.
O mundo dos protestos ambientais e do activismo é um labirinto de comunidades, organizações, associações, plataformas, movimentos, causas e comunidades, alguns dentro uns dos outros ou com ligações uns aos outros – e só por vezes ao BE.
Activismo das redes sociais
Um caso extraordinário é o da Linha Vermelha, que não chega a ser uma associação, é apenas uma campanha que se propõe tricotar linhas vermelhas em protesto com a exploração de petróleo em Portugal. “É organizada por pessoas preocupadas com o secretismo que envolveu as negociações dos contratos de prospecção e extracção de petróleo e gás natural”, lê-se no site da campanha, sem que se indiquem quem são essas pessoas preocupadas com o secretismo. “Posteriormente”, lê-se, “a Academia Cidadã (onde surge João Labrincha, ex-movimento Geração à Rasca) e o Climáximo juntaram-se para dinamizar esta ideia.” Isso não impede a Linha Vermelha de apoiar e subscrever acções e protestos como se de uma entidade real e autónoma se tratasse – e onde surge aliás a par do dito Climáximo e da dita Academia Cidadã, que são “parceiros” da Linha. Já nos “apoios” à Linha, surgem os já referidos Tamera, a PALP, o Tavira em Transição, o ALA, a par de outros, num esquema a fazer lembrar matrioscas: há sempre mais um grupo/campanha que tem ou liga a outra rede/movimento/causa.Hélder Careto, secretário-executivo do GEOTA (que tem órgãos sociais, relatórios de actividade e estatutos disponíveis no seu site e número de telefone – que atende), enquadra a situação: “Há muitas plataformas inorgânicas de activistas, com pessoas muito voluntaristas, mas são coisas imateriais, que vão agitando as redes sociais. Às vezes são três ou quatro pessoas, mas fazem um barulho incrível.” Antes das redes sociais, estes grupos acabavam por se juntar e por “se ir integrando em associações maiores”. Com as redes sociais, vivem por si, com uma página de Facebook, muitos mails e discussão. Sobre se isto comporta um risco de credibilidade para o movimento ambientalista em geral, e para os protestos antipetróleo em particular, reconhece: “É claro.” O Geota está na PALP, “quase por inerência”, e mais nada: “Temos seguido a questão um pouco à distância.” De resto, nota, quando são necessárias acções mais musculadas e que impliquem dinheiro, como os processos judiciais, aí é preciso serem as poucas associações estruturadas a entrar com o financiamento, “são elas que pagam a conta”. Foi a PALP, que tem na sua constituição várias das associações maiores (GEOTA, LPN, Futuro Limpo, Quercus) a avançar com a providência cautelar que está em vigor para o contrato de Aljezur.
O problema também é admitido pelo Futuro Limpo, outro movimento presente na luta antipetróleo, e que se constituiu para isso em 2016 (inclui a ex-jornalista Luísa Schmidt, especialista em questões ambientais, Viriato Soromenho Marques e o economista Ricardo Paes Mamede, por exemplo). António Pedro Vasconcelos, membro do grupo, explica que funcionam “em rede com os restantes movimentos” e compreende que a multiplicidade gere confusão, “mas eles são muito ciosos da sua personalidade e muito susceptíveis”. De resto, também ocorre misturarem-se causas, “às vezes estamos numa manifestação e alguém começa a dizer que quem come carne é criminoso”, e esse não é o tipo de posicionamento da associação, “não queremos nada disso”.
Já Rosa Guedes, da PALP (integra o Glocal Faro, um dos membros da PALP), explica que, por exemplo, o cordão humano Petróleo é Má Onda, de dia 7, foi da incitava individual de alguns activistas, que a PALP e outras organizações tenham apoiado, mas não vê problemas da multiplicação de pequeno grupos: “Defendemos que a multiplicação é boa, todos têm espaço.”
Artigo originalmente publicado na edição n.º 741, de 12 de Julho de 2018.
[Transcrição integral de “Os curiosos protagonistas do activismo verde” – Portugal – SÁBADO, 28.07.18]