O Português na hora di bai?
Em Cabo Verde, o Português vai ser ensinado como língua estrangeira. Vamos muito bem unificados, como se vê.
Nuno Pacheco
———————
Perdida no turbilhão do noticiário geral, passou despercebida uma notícia relevantíssima para o futuro do Português: a de que este vai passar a ser ensinado como língua estrangeira em Cabo Verde, já no próximo ano lectivo.
Antes que comecem já a atirar pedras aos cabo-verdianos, convém atender às razões de tal opção. Já em 2010, o conhecido escritor Germano Almeida defendia, em entrevista à Lusa, o ensino do português como língua estrangeira. Argumentos: “Não podemos pensar que o cabo-verdiano fala o português desde criança, porque não fala. Vemos alunos que terminam o décimo segundo ano e falam mal o português. Há professores que também não sabem falar português, portanto, só podemos concluir que o ensino está a falhar”. Mais: “Portugal, Brasil, Angola não precisam de contactar connosco, nós é que precisamos de contactar com eles, então o português para os cabo-verdianos é essencial. Os cabo-verdianos não são bilingues e por isso precisamos começar a ensinar o português como língua estrangeira”.
Seis anos depois, é a Ministra da Educação de Cabo Verde, Maritza Rosabal, que vem anunciar a iniciativa: “A língua portuguesa é abordada como língua primeira de Cabo Verde, quando não é. Temos uma eficácia do sistema muito baixa, onde apenas 44% das crianças que começam o primeiro ano finalizam o 12.º em tempo. Temos muitas perdas”. Mais: “O Brasil exige provas de língua portuguesa aos nossos estudantes, o Instituto Camões exige provas de língua portuguesa o que quer dizer que apesar de estarmos no espaço lusófono, começamos a não ser reconhecidos como um espaço com proficiência linguística em português”. Ou: “Toda esta duplicidade linguística afecta o processo. Reconhecemos que a nossa língua materna é o crioulo, mas como língua instrumental de trabalho e de comunicação temos de fortalecer a língua portuguesa”.
Ora bem. Perante isto, o que fizeram os senhores que enchem a boca de Língua Portuguesa com os pretensos muitos milhões de falantes? Calaram-se. Varreram o assunto para debaixo do tapete. Não é nada com eles. Mas esperem lá: não vinha o acordo ortográfico de 1990 resolver estes problemas? Não foi Cabo Verde o terceiro elemento do triunvirato (com Portugal e Brasil) que o tornou oficial?[ver nota minha] Então como é que desaba uma perna do tripé, fazendo-o estatelar-se no chão, e ninguém comenta? Será normal que o Português passe a “língua estrangeira” num país que a tem, no papel, por oficial?
A verdade é que tudo isto é natural e, ademais, esperado. A monumental farsa da unidade ortográfica fez-se à margem da realidade. E a realidade tem destas coisas aborrecidas: um país que fala Crioulo, naturalmente, e que faz dele, com o direito que lhe concede a sua soberania, a sua língua oficial em detrimento do Português (embora não o rejeite, pelo contrário); países que assinam por baixo mas que, por falta de dinheiro ou desinteresse, viram costas à assinatura (Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe); países que têm preocupações bem mais graves do que limar umas letras (Timor-Leste), países que assinaram mas não ratificaram nem se sabe se o farão (Angola e Moçambique). E isto é, senhores, um “acordo” internacional![ver nota] Claro que nada disto impede que o grupo excursionista do acordo ortográfico continue, impante, nas suas viagens, a pregar a velha “boa” nova e a declarar o acordo “irreversível”. Mas devia dar que pensar aos que, de boa-fé (os outros jamais o farão), se empenharam num acordo que, no estado actual, apesar dos discursos em contrário, é um penoso e adiado cadáver sem qualquer utilidade. Tudo isto teria sido evitado se, em lugar de se gastarem rios de dinheiro na impossível unificação das ortografias, se avançasse para o que há muito devia ter sido feito: um trabalho interacadémico para gerar um verdadeiro Vocabulário Comum que consignasse as diferenças ortográficas, identificando os países onde deviam aplicar-se, em lugar de as esconder.
Cabo Verde? Não se passou nada. O Português é uma língua forte, de negócios, dá milhões, etc. Não há quem abra a janela e veja o que se passa cá fora? Que reflicta, ao menos, no patético de tudo isto?
[Transcrição integral de artigo, da autoria de Nuno Pacheco, publicado na edição em papel do jornal “Público” de 15.12.16. Os destaques e os “links” a azul são meus. Imagem de: Diário Digital.]
Realmente, esta é mesmo uma história mal contada e portanto a maioria das pessoas baralha-se com os nomes dos países do “triunvirato” que “tornou oficial” a entrada em vigor do AO90 em todos os 8 países-membros da CPLP.
Para facilitar (e nem de propósito, dado o título) transcrevo da História (Muito) Mal Contada um trecho que pode ajudar a dissipar dúvidas. Do capítulo intitulado, mais ainda nem de propósito, “A porca da política“:
Um ano depois da assinatura dos papeis, o AO90 chegou pela primeira vez ao Palácio de S. Bento (não confundir com o palacete que também lá há) e foi aprovado pelos deputados. Evidentemente, os ditos não sabiam ao certo o que era aquilo mas pronto, siga, já que o Partido manda votar “sim”, pois então votemos “sim”, não interessa, isto até é giro, uma “grafia única”, isso é que era bom, enfim, está tudo doido mas não importa, há que obedecer, isto da “disciplina partidária” é coisa séria, não brinquemos.
Após estas parlamentares tergiversações, largos tempos se passaram sem que sequer se tornasse a ouvir falar do “acordo”; dois anos, cinco anos, dez anos e… nada. Mudou o século, dobrou o milénio e… nada. Passou 2001, findou 2002 e… nada de nada. Por fim, em 2004, o gigantesco Brasil — pois que outro país poderia ser o “bandeirante” da coisa — ratificou o “acordo”. No ano seguinte, 2005, um segundo país, que por acaso não é lá muito gigantesco (Cabo Verde), ratificou também aquilo. E em 2006 houve um terceiro país, ainda menos gigantesco do que o segundo (S. Tomé e Príncipe), que igualmente se chegou à frente e tratou de ratificar o AO90.
Mas então, sendo assim, só três países não são suficientes, pois não?, o “acordo” só entraria em vigor se todos os países da CPLP o ratificassem, certo?
Errado. Será necessário repetir que isto é política? Em política, por definição, nada é o que parece. Criou-se logo ali um expediente ad-hoc, abriu-se uma excepção ao Direito internacional e pronto, está ultrapassado o percalço: em vez de ser exigida a ratificação de todos os Estados envolvidos, conforme preconiza a Convenção de Viena, passaria a ser suficiente a ratificação de apenas três deles. Maravilhosa coincidência, não? São hoje oito* os países que integram a CPLP mas bastaria a ratificação do AO90 por três deles para que o dito AO90 entrasse em vigor em todos os oito!