Na edição do “Público” de Domingo, 17 de Julho de 2016, uma série de artigos a propósito do 20.º aniversário da CPLP. Este é outro desses artigos, versando — quando não tergiversando — todos eles sobre o monumental barrete em que consiste aquela bizarra organização “lusófona”.
Este texto, em concreto, tem a particularidade de tentar fazer passar a (peregrina) ideia de que a bizarria foi uma iniciativa portuguesa promovida por portugueses para proteger os interesses de Portugal.
Nada de mais errado, é claro, como sabe perfeitamente qualquer pessoa capaz de ler e de, principalmente, distinguir uma peça jornalística de um panfleto de propaganda.
No entanto, a forma absolutamente neutral (ou ingénua?) como o articulista descreve comportamentos de despudorada… hum… digamos… “leveza”, no processo de constituição e ao longo do (penoso) trajecto da inacreditável aldrabice conhecida como “CPLP”, transforma esta peça em algo de muito importante para que se entendam as motivações subjacentes, aquilo que verdadeiramente interessou aos mercenários envolvidos na golpada.
Lula da Silva com Teodoro Obiang: os brasileiros impuseram a sua agenda à Comunidade FOTO: CELSO JUNIOR
O futuro da CPLP e a sua entrada na idade madura dependem de factores exógenos. O mundo está a mudar. Por agora, os olhos estão postos na força geopolítica do Brasil e nos ajustamentos da globalização.
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“Enquanto a CPLP não se transformar num instrumento relevante para a política brasileira, não tem pujança à escala internacional.” A frase é do embaixador Francisco Seixas da Costa e o próprio ironiza com o “politicamente incorrecto” desta afirmação entre os seus antigos pares do Palácio das Necessidades, a sede da diplomacia portuguesa. “Portugal tem de se manter activo, mas se a CPLP não representar um valor acrescentado para o Brasil, não passa da cepa torta”, diz, subindo a fasquia da heterodoxia. “Afinal, o que ganha o Brasil?”, interroga-se.
“O Brasil tem no plano bilateral relacionamentos que dispensam a tutela de uma organização multilateral, na CPLP tem a língua portuguesa que não lhe acrescenta nada ao que consegue obter no plano bilateral”, diz. Pelo que sentencia: “Gostaria que Portugal entusiasmasse mais o Brasil na CPLP.”
A opinião do ex-secretário de Estado de um governo socialista não é única. Martins da Cruz, ministro com Barroso e antigo assessor diplomático de Cavaco Silva em São Bento lamenta a apagada tristeza com que a classe dirigente brasileira encara a CPLP, ao ponto de ser, ao mais alto nível, ausente crónica nas cimeiras. “O Brasil não se interessa pela CPLP, o Brasil continentalizou a sua política externa e olha para o Norte e para os Estados Unidos. Havia interesses empresariais brasileiros em Angola mas os presidentes daquelas companhias [do Brasil] estão todos na cadeia”, refere.
Hoje, aos 20 anos da CPLP, tudo mudou. “O Brasil é demasiado grande para precisar da CPLP”, concluiu Francisco Seixas da Costa. Já depois do ‘mensalão’, mas antes da crise do preço do petróleo e da babel de corrupção que afecta a classe política brasileira, Brasília tem lugar por direito nos areópagos dos poderosos. Está no G20, no Mercosur, entre os grandes emergentes dos BRIC, com a Rússia, Índia e China, e acalenta a um posto permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas.
A Comunidade dos Países de Língua Portuguesa é acessória, nesta agenda de realpolitik. Claro que, como nota Carlos Gaspar, lhe serviu, décadas atrás, para se afirmar no Atlântico Sul. Mas hoje os motivos de afirmação são outros.
Nos primeiros anos da sua existência, a CPLP, concretamente Portugal, serviu de ponte para obter na União Europeia fundos comunitários. A importância que Bruxelas deu à África subsariana vem daí. Mas “a globalização enfraqueceu a dimensão da CPLP”, constata um diplomata da primeira hora da organização, que pede o anonimato. “Não só entraram em acção novos actores, o Japão e a China, bem como a Alemanha, que está muito interessada no sistema bancário angolano em detrimento da presença da banca portuguesa”, refere.
Há dois anos, Rui Machete, então ministro dos Negócios Estrangeiros, promoveu um encontro/reflexão com os seus antecessores Luís Amado, Martins da Cruz, António Monteiro, Jaime Gama e João de Deus Pinheiro. Quem dirigiu a diplomacia portuguesa ao longo de décadas vincou a necessidade de transformar a CPLP num vector de afirmação da política externa de Portugal, admitindo que tal salto implicaria transformações. Constatavam que a língua portuguesa como vector identitário já estava ultrapassada, como confuso e paternalista era o discurso nostálgico da relação metrópole/colónia. Então, já as siglas CPLP eram acrónimo de Comunidade de Problemas de Língua Portuguesa, uma organização com sede repartida nos oito países que a configuravam, antes da adesão da Guiné Equatorial de Teodoro Obiang. Da Europa à América Latina, de África à Ásia.
“A CPLP pode ser um actor no domínio da energia, com uma população de 250 milhões de habitantes, equivalente a 3,6% da população mundial, com 3,9% do PIB mundial, e uma produção de seis por cento do petróleo mundial e de um por cento do gás”, avança Martins da Cruz. “Dentro de 15 anos, com São Tomé e Príncipe, a Guiné-Bissau e o Norte de Moçambique com as terceiras maiores reservas do gás do muindo, a CPLP terá 20% da produção de gás e petróleo a nível mundial”, antevê. “Claro que não é a CPLP quem vai fazer frente ao domínio da OPEP [Organização dos Países Exportadores de Petróleo], mas pode-se fazer um cruzamento de investimento, abrir um caminho que pode tornar o Atlântico Sul uma espécie de triângulo mágico para a CPLP”, conclui.