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Tribunais em desacordo ortográfico
Joana Pereira Bastos
Depois de ter marcado a visita do Presidente da República a Moçambique, no início deste mês, a polémica em torno do Acordo Ortográfico (AO) chegou esta semana à Justiça. A Associação Nacional de Professores de Português e um grupo de cidadãos avançaram quarta-feira com uma acção no Supremo Tribunal Administrativo pedindo a ilegalidade da resolução do Conselho de Ministros de 2011 que mandou aplicar o AO à administração directa do Estado e a todo o sistema de ensino.
Mas a verdade é que entre os próprios juízes reina o desacordo em relação a este assunto. Nos sites de vários tribunais domina a confusão linguística, com a utilização simultânea das regras ortográficas pré e pós-acordo. Por exemplo, “o sítio do Supremo Tribunal de Justiça pretende ser um meio de comunicação direto” (sem c, como mandam as novas regras), onde os cidadãos podem consultar a “actividade institucional” (com c, como se escrevia antes do AO) do presidente, António Henriques Gaspar – a terceira figura do Estado. O mesmo que, em todos os discursos oficiais, prefere não eliminar as consoantes mudas e continua a escrever como antes se aprendia.
“A resolução do Conselho de Ministros [que impõe a nova grafia a todos os serviços e organismos sob tutela do Governo e a todo o sistema de ensino] é administrativa, não se aplica aos Tribunais e não vincula o Supremo Tribunal de Justiça”, esclarece o STJ. Em declarações ao Expresso, a mais alta instância judicial adianta que a aplicação ou não do Acordo Ortográfico “é matéria da liberdade de cada juiz-conselheiro.” A posição do Conselho Superior da Magistratura vai no mesmo sentido.
Em 2012, numa sessão plenária sobre a aplicação do AO, o órgão de disciplina dos juízes deliberou que “não pode indicar a forma em que as peças [processuais] deverão ser publicadas”. Ou seja, cabe a cada juiz decidir as regras ortográficas com que prefere escrever os acórdãos.
Entendimento diferente tem, no entanto, o presidente do Tribunal da Relação. “Sigo a nova grafia em todos os documentos oficiais – publicações, despachos, comunicações ou concursos, por exemplo – porque é obrigatório”, diz Luís Vaz das Neves. Mas só nesses casos. Em tudo o resto, incluindo o texto que assina no site do Tribunal, o responsável continua a escrever de acordo com a ortografia antiga. “Nunca me habituei às novas regras. Mas obviamente que as respeito naquilo que se impõe, ao nível do serviço do Tribunal”, explica.
Uma frase, duas ortografias
Mais confuso parece estar o presidente do Tribunal Constitucional, Joaquim de Sousa Ribeiro, que chega a utilizar as duas ortografias na mesma frase. No texto que assina no site do TC, escreve: “O conhecimento, pelo público em geral, e não apenas pelos operadores jurídicos, cultores e estudantes de Direito, da actividade [com c] do Tribunal e, em particular, da sua jurisprudência é, assim, por nós compreendido como um indispensável instrumento de uma cidadania que se deseja responsável e ativa [sem c]”.
Em todo o site do Tribunal Constitucional, tal como acontece no Tribunal de Contas, coexistem ambas as regras ortográficas. Os conteúdos publicados antes da entrada em vigor do AO não foram corrigidos e a mesma palavra chega a aparecer escrita com as duas formas, lado a lado (ver foto).
Se nos tribunais a aplicação do acordo pode ser opcional – como acontece no caso de todas as empresas privadas -, já os serviços e organismos que dependem do Governo são mesmo obrigados a respeitá-lo. Mas isso nem sempre acontece. Apesar de a maioria cumprir, há erros comuns, como a escrita dos meses com maiúscula em vez de minúscula.
A Autoridade Tributária e Aduaneira parece ser a recordista do incumprimento. No site do organismo que fiscaliza os impostos abundam os c mudos antes do t, como “actividade”, “correcto” ou “efectuar”. E são muitos os duplos c que se mantêm apesar das novas regras, como “inspecção” ou “direcção”.
Manter a ortografia antiga e acabar com a aplicação obrigatória do Acordo na administração do Estado e no sistema de ensino é precisamente o que pede a acção judicial que entrou esta semana no Supremo Tribunal Administrativo e que alega que a obrigatoriedade teria de ter sido imposta por uma lei ou decreto-lei e não apenas por uma resolução do Conselho de Ministros, como aconteceu. Os autores da acção argumentam ainda que a alteração aprovada em 2004 e que permite que as novas regras estejam em vigor com a ratificação de apenas três países “viola o espírito do tratado original”, que obrigava a que todos os Estados da CPLP o adoptassem. Mas há mais: “Ao pretender impor-se a uma ortografia estabilizada há 70 anos, o AO viola o artigo 43 da Constituição, que diz que o Estado não pode programar a educação e a cultura segundo directrizes políticas ou ideológicas, que é o que está aqui em causa”, adianta Artur Magalhães Mateus, um dos autores da acção.
Resta saber com que regras ortográficas os juízes vão escrever o acórdão deste caso.
Com João Pedro Mozos
[Texto recomposto a partir de notícia (amalgamada) publicada no “site” do SMMP, sem data de publicação mas que presumo tenha sido 14.05.16. Adicionei “links”. Destaques meus.]
[Imagem de topo: Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Wikipedia: By João Carvalho (Own work) [CC BY-SA 3.0], via Wikimedia Commons.]