Os Calhaus Rolantes

the_rolling_stones_band_red_tongue_logo_32x24er__5b7ebbd1E outros detritos“, realmente. Cada vez mais o “lema” deste Apartado 53 faz sentido.

O texto que agora transcrevo (com a devida vénia), ainda que se trate de um detrito muito remotamente relacionado com o AO90, vai direitinho para a secção “engana-me, que eu gosto”.

José Carlos Fernandes apresenta neste seu trabalho uma extensa lista de argoladas em traduções, a maior parte das quais muito comuns, mas algumas outras se poderiam ainda pescar do aquário de pérolas de “cultura” — ou do manual de anedotas — das traduções portuguesas. Um mundo de loucos, em sentido literal, onde vale tudo menos tirar olhos (do Inglês, faz de conta, “all goes but to take off eyes”). Torna-se muito difícil determinar ao certo se os tradutores tugas são (regra geral) incompetentes por natureza ou se este “fenómeno” — cada vez mais generalizado — não será já uma consequência directa das fornadas de analfabetos funcionais “formados” pelo sistema de “ensino” português dito “inclusivo”, isto é, aquele que inclui a nacional máxima “tudo ao molho e fé em Deus”.

Temos aqui uma excelente recensão, sem dúvida, de mais a mais tendo sido publicada em Português (do melhor) num pasquim electrónico muito dado à propaganda acordista.

Isto, como diz o outro, anda tudo ligado…

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A praga dos vocábulos estrangeiros que não sabemos usar. Está Portugal perdido na tradução?

José Carlos Fernandes

15 Maio 2016

Uma praga de vocábulos invasores, maioritariamente de origem inglesa, está rapidamente a tomar o lugar de espécies endémicas, perante a costumeira passividade das autoridades lexicográficas.

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Nem sempre é possível apurar o que é uma espécie invasora e nem sempre tais espécies chegam a representar ameaças reais para o equilíbrio dos ecossistemas e para a biodiversidade, como argumenta Ken Thompson em Where do camels belong?: The story of invasive species (2014, Profile Books). Mas se há preconceitos, mitos e alarmismo em torno de algumas espécies invasoras, é indiscutível que outras são mesmo nefastas e que a intensificação do processo de globalização está a fazer com que os processos de invasão se tornem cada vez mais difíceis de controlar. O que é válido para espécies animais e vegetais vale também no domínio das línguas – e o inglês, que assumiu inequivocamente o papel de língua franca mundial, embora sendo estimável e útil, parece estar a colonizar o discurso de muitos portugueses com conhecimentos pouco sólidos quer de inglês quer da sua língua materna.

Pode morrer-se de antecipação?

Até há pouco – digamos 10 anos – ninguém teria dúvidas sobre o que queria dizer “antecipar um jogo de futebol”: era alterar a realização do encontro para dias ou horas antes da altura inicialmente agendada. Hoje, porém, tal expressão passou a designar, antes de mais, uma dissertação de natureza prospectiva sobre as condicionantes, desenvolvimento, desfecho e consequências prováveis de um jogo de futebol, apoiada em entrevistas a treinadores, jogadores, dirigentes e comentadores – aquilo a que, há 10 anos, seria designado por “antevisão”. Ontem, como hoje, é um exercício repetitivo e sumamente fútil e ridículo, sobretudo quando se reveste da pompa da pseudo-ciência e do jargão do futebolês, mas, ao menos, era designado por uma expressão correcta e esclarecedora: “antevisão”. Um dos problemas com a “antecipação do jogo” é que quando alguém anuncia que a vai fazer, nos assalta a dúvida sobre se irá apenas desfiar as inanidades usuais (“X precisa de pontuar”, “Y vem de uma série de bons resultados”, “Z não pode contar com o seu melhor marcador”) ou mudar a data do jogo de domingo para sábado.

Não seria grave se este uso de “antecipar” no sentido de “antever” se circunscrevesse ao mundo do futebol, já de si com propensão para pontapear a língua portuguesa, mas trata-se apenas um dos muitos aspectos do uso deslocado do verbo “antecipar” que, num ápice, escorraçou vários verbos de uso consolidado e de indiscutível utilidade.

Esta espécie invasora tem origem conhecida: veio do lado de lá do Canal da Mancha. Em inglês “to anticipate”, além de ter, como em português, o significado de “ocorrer ou ter lugar num momento anterior ao agendado ou esperado”, também tem o sentido de “adivinhar, antever, prever, predizer, esperar, pressagiar, contar com”. O uso de “antecipar” em português com o mesmo sentido do “to anticipate” inglês alastrou de forma imparável, de forma que hoje, a toda a hora se ouvem economistas que antecipam a descida das taxas de juro do Banco Central Europeu, estudantes que, perante a facilidade do exame, antecipam bons resultados, e transeuntes que, face às nuvens carregadas, antecipam chuva e buscam resguardo. Já sem falar dos médicos de quem se espera que antecipem as doenças dos seus pacientes (ainda que seja improvável que alguém queira sofrer de Alzheimer logo aos 30 anos de idade).

O que se passou aqui é que um vocábulo que já existia em português ganhou um significado muito mais vasto e impreciso do que tinha antes, ao mesmo tempo que expulsou do léxico corrente um grande número de vocábulos de significado preciso e variado. “Adivinhar” implica menos rigor que “predizer” ou “prever”; “conjecturar” e “futurar” comportam um elemento especulativo; “augurar”, “pressagiar” e “pressentir” assentam mais na intuição (e, eventualmente, no exame de entranhas de galinha); “vaticinar” tem associada uma convicção firme; e “esperar” algo, pode incorporar uma componente de desejo e não significa necessariamente que tal ocorrência seja provável. Mas todas estas palavras saíram de uso e as subtilezas e gradações que elas permitiam estão hoje submersas sob o lamaçal homogeneizador do “antecipar”.

Outra vítima da praga “antecipar” foi o verbo “prefigurar”, que, apesar da sua reconhecida utilidade, caiu em desuso num ápice: hoje diz-se e escreve-se que “os bombardeamentos pela Legião Condor na Guerra Civil de Espanha antecipam a actuação da Luftwaffe na II Guerra Mundial”.

Em inglês, que é uma língua eminentemente polissémica, “anticipation” tem ainda outro significado: o de “expectativa” e, mais especificamente, da “sensação de excitação em relação a algo que vai ocorrer”. E é a assimilação acéfala deste sentido que produz os resultados mais ridículos em português: um espectáculo de uma estrela pop é anunciado como “o concerto mais antecipado do ano” e, naturalmente, os olhos dos fãs que se acotovelam para adquirir bilhetes “brilham de antecipação”. Estes dislates não poupam a literatura traduzida em português: a biografia de Josefina (a Sr.ª Bonaparte), por Kate Williams, menciona uma “antecipação dolorosa” (ter de pagar em 2015 os impostos de 2016?) e uma personagem do romance Submissão, de Amy Waldman, declara “Estou a morrer de antecipação”.

Os nossos egrégios avós não iriam gostar disto

O vocábulo inglês “egregious” teve, em tempos, significado análogo ao do português “egrégio”, que, diz-nos o dicionário da Porto Editora, equivale a “distinto, nobre, ilustre, insigne”. Porém, “egregious” sofreu uma mutação inversa daquela por que passou “bestial” em português, que deixou de designar algo próprio de uma besta para passar a ser algo excepcionalmente bom: “egregious” é hoje sinónimo de “excepcionalmente mau”, “infame”. Porém, poucos tradutores parecem sabê-lo e traduzem sistematicamente “egregious” por “egrégio”, apesar de o resultado serem coisas tão absurdas como “as egrégias violações dos direitos humanos na Síria” ou “o egrégio comportamento das claques deixou as ruas com um aspecto desolador”.

 A versão original, de 1890, de “A Portuguesa” invocava os “egrégios avós” para apelar a que se marchasse, não contra os “canhões”, mas contra os “Bretões”, dado que por esta altura a nação portuguesa fervia de indignação com o Ultimato britânico desse ano, que frustrava as ambições territoriais portuguesas em África. Passado mais de um século sobre esta comoção nacional, há que marchar não contra os “Bretões” mas contra a assimilação acrítica do seu vocabulário.

Importa-se de ir bombardear para outro lado?

Os bombardeamentos nem sempre acertam no alvo e muitas vezes causam “danos colaterais” e a língua portuguesa e a clareza da comunicação estão frequentemente entre as vítimas. Em inglês “bombing” refere-se, indistintamente, a duas situações distintas de rebentamento de explosivos: aquela que resulta de disparos de artilharia ou da largada de bombas por aviões – que equivale ao português “bombardeamento” – e aquela em que alguém faz detonar explosivos num local – para a qual o português não tem substantivo, usando-se como substituto mais aproximado “atentado bombista”.

Não é portanto legítimo que quando um terrorista se faz explodir se fale em “bombardeamento”, tal como não é correcto designar os atentados bombistas de 7 de Julho de 2005, em Londres, por “bombardeamentos de Londres”, mesmo que os anglófonos usem a expressão “London bombings” para os designar.

Não é defeito, é feitio

Tornou-se corrente usar a expressão “por defeito” para designar especificações ou procedimentos que são assumidos automaticamente na ausência de outras indicações. A expressão, que entrou na linguagem comum pelo lado da informática, provém do inglês “by default”, que o Oxford English Dictionary define assim: “por falta de oposição, na ausência de uma acção positiva e não por escolha consciente”.

“Armas de destruição massiva”: este não é um falso amigo, mas protagonizou um dos mais espectaculares casos de quase total extinção, em pouco mais de uma dúzia de anos, de uma espécie autóctone e perfeitamente adaptada ao nosso clima – o adjectivo “maciço” – pelo aportuguesamento de um híbrido (nunca antes visto num dicionário português) derivado do inglês “massive”. A prevalência de “massivo” à custa de “maciço” pode ser vista como um dano colateral da Guerra do Golfo.

“Sentimentos mistos” – as tostas mistas dão jeito, se não se tiver tempo para comer de faca e garfo, mas os “sentimentos mistos” não servem para nada, são apenas uma tradução trapalhona de “mixed feelings”, expressão para a qual temos, há muito, equivalente: são os “sentimentos contraditórios”.

O mundo está em mudança mas não vale tudo

A tecnologia inunda-nos com novos dispositivos e funções e a forma como as pessoas se relacionam, entre si e com o mundo, ganha novas e inesperadas facetas a cada ano que passa. As línguas sempre foram entidades dinâmicas e, neste contexto de mudança incessante, tornaram-se mais fluidas do que nunca e a admissão de vocábulos estrangeiros (ou das suas adaptações) pode contribuir para enriquecê-las. Porém, em muitos casos, aquilo a que se assiste é a importação de palavras redundantes, por existir já palavra portuguesa que desempenha satisfatoriamente essa função (como é o caso da “auto-estima”), ou a introdução de palavras que vêm propiciar confusões e equívocos e expulsar do vocabulário corrente todo um conjunto de palavras úteis e com significados distintos, traduzindo-se num empobrecimento da língua (como é o caso do “antecipar”).

Espera-se que uma língua ofereça resistência a estas “inovações” ditadas quase sempre pela ignorância, pela preguiça e pela falta de rigor, mas o português deixa-se facilmente levar pelas novas modas. Por um lado, não temos, como tem França ou Espanha, uma Academia que faz a monda das ervas daninhas – por cá, é a Academia a primeira a embarcar em inovações inúteis, arbitrárias e descabeladas, como seja o inenarrável Acordo Ortográfico. Por outro, não temos como o mundo anglófono, um sólido corpo de dicionários com funções normativas – a maioria dos nossos dicionários limita-se a registar, acriticamente, o que se diz por aí, mesmo que seja uma rotunda tolice. Veja-se o caso de “solarengo”: trata-se de um adjectivo relativo a “solar” (casa de família nobre ou abastada), mas bastou que alguns espíritos desnorteados passassem a usá-lo, erradamente, com o significado de “soalheiro”, para que o Dicionário da Academia das Ciências de Lisboa acolhesse esse significado. Uma eminente lexicógrafa, numa recente entrevista à nossa rádio pública, quando instada a pronunciar-se sobre a evolução da língua, mencionava, precisamente, o exemplo da entrada nos dicionários de “solarengo” como sinónimo de “soalheiro”, não para o lamentar ou reprovar, mas para fazer valer a lógica do facto consumado: se se diz, cabe ao dicionário registá-lo. Se a função dos lexicógrafos e dos dicionários é, afinal de contas, a certificação do disparate, para que precisamos deles? Quem quereria ter no carro um GPS que lhe diga “no próximo cruzamento vire à direita, ou vire à esquerda, ou siga em frente, ou faça inversão de marcha”?

O problema é que, independentemente da natureza e qualidade dos dicionários, são eles a autoridade a que se recorre quando é preciso tirar dúvidas, pelo que um disparate, uma vez dicionarizado, torna-se legítimo e inamovível. Algumas das infestantes acima mencionadas já figuram nas edições mais recentes dos dicionários em papel e nos dicionários online, como se sempre tivessem feito parte da flora autóctone, enquanto as espécies endémicas são espezinhadas e definham.

[“Observador”, 15.05.16. Destaques meus. Imagem de topo: logótipo dos Rolling Stones, copiado de Free Web Destinations.]


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