No Brasil é obrigatório traduzir de Português para português

Este artigo da rede Globo (Brasil) é muito interessante. Por diversos motivos, a começar pelo “facto” de no Brasil os documentos portugueses, angolanos ou moçambicanos terem de ser traduzidos para “português” (unificado, presume-se), continuando pelo uso recorrente de “pra” em vez de “para” (o que é “curioso” num texto jornalístico), e terminando pelo comentário de um leitor:
«Correto seria nas audiências os depoentes também usarem suas linguagem. Pessoas do roça “dona juíza eu tô com as vistas nuviada ” oitava de malas tia o mano Tava me tirando falou eu era tóra rego”pow tia aí meti os ferros nele .Kole Kra tá me estranhado eu não uso calça colada tipo Gustavo Lima não. »

Unificação da Língua Portuguesa não consegue passar por barreiras legais

 

Papelada precisa ser traduzida do português para o português por causa de registros públicos exige a tradução de documentos estrangeiros.

 

Na segunda-feira (21), você viu No Jornal Nacional que o acordo ortográfico assinado por Brasil, Portugal e outros seis países ainda gera dúvidas e críticas. Nesta terça-feira (22), a gente vai mostrar que, pra unificar a língua, aparecem dificuldades onde menos se espera.

Na Rua Capela, no centro de Aracaju, passa a linha de fronteira que separa a língua portuguesa falada no Brasil da língua falada nos outros países que também assinaram o acordo ortográfico. Para o cartório de títulos e documentos, moçambicanos, angolanos e portugueses falam uma língua estrangeira.

Em março de 2015, o advogado Lucas chegou com certidões de nascimento, casamento e de óbito da mãe de um cliente angolano. Papéis escritos em português, carimbos angolanos e até do consulado brasileiro em Luanda, capital de Angola. Mas o cartório exigiu: a papelada precisava ser traduzida do português para o português. É que a lei de registros públicos exige a tradução de documentos estrangeiros. O caso foi parar na Justiça.

“A minha obrigação normal de cartório foi realmente provocar essa dúvida, suscitar essa dúvida, pra que fique pra todos os cartórios de Sergipe”, afirma Francisco Francisco Vieira da Paixão Neto, escrevente.

O Tribunal de Justiça de Sergipe confirmou em primeira instância a exigência de tradução dos documentos.

“Se houvesse algum problema com o documento em si determinaria uma perícia, determinaria uma outra coisa para solucionar, mas jamais a tradução juramentada de português para português”, argumenta Lucas D´Avila Garcez, advogado.

A equipe do JN falou com o cliente, Luis Filipe, pela internet. Ele veio ao Brasil pra fazer o inventário de uma casa que herdou da mãe. Voltou sem resolver nada.

“Uma coisa é dizer que o documento estava ilegível, se fosse o caso, que não foi. Agora, traduzir de português para português, é, no meu ponto de vista, um bocado ridículo. É algo completamente despropositado”, diz Luiz Filipe Pereira Barata, representante comercial.

A Justiça publicou a decisão em português, claro. Quer dizer, nem tanto: “Acolho a pretensão exordial para fins de considerar válida a exigência de tradução juramentada dos documentos estrangeiros apresentados pelo suscitado, devendo a tabeliã suscitante proceder ao cancelamento da prenotação realizada e consequente devolução dos valores pagos pelo suscitado”.

E aí? Entendeu o que é suscitado, suscitante? Pretensão exordial? Tudo isso está na decisão da juíza Erica Magri, do Tribunal de Justiça de Sergipe. Para ela, documentos angolanos escritos em português só têm validade no Brasil se forem traduzidos para o português.

Agora… Será que não era o caso também de traduzir documentos, decisões de tribunais de todo o Brasil para o português que você entende?

O JN fez o teste. O Marcos, que é contador, tropeçou em algumas palavras.

“Não tem como entender isso aqui. Como é que uma pessoa leiga vai entender isso aqui?”, questionou o contador Marcos Felício Rodrigues.

O João trabalha no almoxarifado. E reclama.

“Às vezes a pessoa não entende nada daquilo que o juiz fala, que o advogado fala, dessa linguagem aqui”, disse João Carlos Bispo Pereira, almoxarife.

Nem a Mylena Devezas Souza, que é estudante de direito, entendeu tudo.

“Algumas palavras como exordial, eu acho que fica mais complicado de entender”, ela afirma.

A funcionária do Tribunal de Justiça do Rio diz que todo dia vê textos complicados assim.

“As partes, muitas das vezes elas vêm aos cartórios pra ter notícia do andamento do processo dela, e elas lendo elas não conseguem entender nada”, contou Elaine Maria Pereira Nascimento, funcionária pública do TJ-RJ.

Maria Pia, advogada, tem um blog na internet e escreveu um livro para traduzir a complexa linguagem do direito.

“Eu acho errado. Eu acho que dá pra falar tudo que está escrito de uma maneira muito mais simples. Decisões mais simples tendem a ser cumpridas de forma mais fácil e mais rápida. É esse é o objetivo do processo”, defendeu Maria Pia, advogada.

A linguagem rebuscada, usada em tribunais e que pouca gente entende, tem nome: é o juridiquês. A equipe do JN acompanhou a aula do desembargador Wagner Cinelli para funcionários do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, profissionais do direito. Na aula eles aprendem exatamente o contrário: a usar uma linguagem simples.

O desembargador explica que o juridiquês é diferente da linguagem técnica. Alguns recursos e figuras jurídicas têm nomes complicados mesmo, e isso não deve mudar.

“O ‘agravo de instrumento’ é uma coisa que o homem do povo vai saber? Provavelmente não, mas a gente sabe que é o nome de um recurso, que é o recurso que ataca a decisão do juiz”, diz Wagner Cinelli, desembargador.

Mas ele ensina que o floreio excessivo, o uso de expressões antigas, algumas em latim, não melhoram o conteúdo de uma decisão. É o caso de algumas expressões que vimos lá no início da reportagem.

“Uma expressão que a gente usa muito, que é exordial, que quer dizer a peça inicial do processo”, explica uma aluna.
E tem mais.

“Um exemplo de uma expressão curiosa, muito engraçada e totalmente desnecessária é ab ovo, usada pra indicar ‘inicialmente’, ‘de início’”, contou um aluno.

Só que fugir do juridiquês é um desafio até pra os alunos, que condenam a linguagem rebuscada.

Fábio Henrique: É um rebuscamento desnecessário pra peça, que não alcança o jurisdicionado daquele processo ele se quer entende do que tá se tratando.
Jornal Nacional: Jurisdicionado?
Fábio Henrique: Isso, jurisdicionado, a pessoa que está participando do processo e está pedindo pela concessão do direito ali no processo.

“É importante falar de forma simples pra pessoa ser entendida. Quanto menos ruído na comunicação, melhor”, defende Wagner Cinelli.

Tribunais em todo o país vêm se esforçando para simplificar a linguagem. A orientação é que juízes escrevam sentenças de forma clara e direta para que qualquer pessoa entenda.

“Autoridade se impõe não com palavras, autoridade se impõe com respeito, com forma, com a educação, e principalmente com a honestidade e justiça nas suas decisões”, afirma Ricardo Múcio, corregedor do TJSE.

[Transcrição integral de notícia da rede Globo (Brasil) de 22.12.15. Os destaques são meus.]


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