Uma história (muito) mal contada [VI]

camoesmulata

O fim da inocência

Para que se entenda com exactidão a ILC-AO é necessário situá-la no tempo e no espaço. Quando o projecto foi lançado, o tempo era de não se passar nada e o espaço era o vazio total. De facto, se antes da “discussão” e do arquivamento da Petição/Manifesto de VGM tinham passado longos meses de (enervante) espera, pois então depois desse arquivamento sem discussão ainda foi pior, não havia já mais nada por que ao menos esperar, tudo parecia estar irremediavelmente perdido, as pessoas conformadas, alheadas, desinteressadas. Dir-se-ia que não tinha sido só uma petição sobre o AO90 a ser arquivada, mais parecia que toda a contestação, toda a oposição, toda a resistência ao “acordo ortográfico” tinha também sido atirada — e para sempre — para um qualquer arquivo morto.

Porventura estarei a ser maçador com a insistência, mas este “pormenor” parece-me fundamental e sem esclarecê-lo devidamente não é possível compreender coisa alguma sobre a ILC-AO, os seus “porquês”: quando surgiu, como surgiu e,  sobretudo, porque surgiu. Muita gente já não se lembrará disto, acredito, mas farão vossemecês a fineza de admitir que terei eu talvez  alguns (fortes) motivos para me recordar exactamente do que se passou: nada. Absolutamente nada. Foram meses e meses a fio sem um só artigo de jornal, por exemplo, sem uma única referência ao “acordo”; o assunto estava mais do que morto e enterrado, ninguém sequer falava já dele, estava instalado o “facto consumado”, os mais (e os menos) destacados militantes anti-acordistas estavam desaparecidos, ausentes, em parte incerta.

Em certa medida, a ILC funcionou como uma verdadeira provocação: veríamos se mesmo assim, com uma arma política já “nas ruas”, os desaparecidos não voltariam a aparecer, a juntar-se à luta e mesmo, quem sabe, se não se disporiam a liderá-la de novo…

Como mais tarde se viu, a provocação resultou em pleno. Não apenas toda aquela gente voltou  ao activo, como muita outra gente, que até então estava a léguas do assunto, passou a interessar-se pela questão, a envolver-se nela e por fim a lutar por ela. Foram portanto muitos, imensos, os prós da táctica “provocatória”.

Que teve também os seus contras, pois claro.

A começar pelo facto de ao “número dois” da Petição/Manifesto não terem agradado nem um bocadinho as minhas (públicas) provocações, a começar pelas não muito elogiosas referências aos “desaparecidos em parte incerta“; e porque o dito “número dois”  também não apreciou o “boneco” em que uma dançarina de samba aparece com a cabeça de Camões, pois vá de me “exigir” que apagasse o seu (dele) nome por extenso do “site” alojado em Wikidot. É que, pelos vistos, como o dito “boneco” fazia de logótipo daquele “site”, o homem não queria que o seu nome (por extenso) ficasse associado a uma coisa que ele disse achar “xenófoba”. Pois muito bem, com certeza, eu cá não quero que falte nada a ninguém, apague-se então o nomezinho, nesse caso ficam só  as iniciais.

Este episódio foi o primeiro de muitos, qual deles o mais (tristemente) caricato, em resultado não apenas desta ou daquela táctica pontual durante o lançamento da ILC, mas principalmente porque (e quando) ela já tinha passado de simples ideia a projecto concreto e este começou mesmo a ser executado.

Ainda antes de a iniciativa sair para “a rua”, o que viria a suceder em Abril de 2010, já (eu) sabia que a luta não iria ser fácil, pois está claro, e que não iria ser rápida, fulgurante, imediata, que não bastaria um estalar de dedos. Sabia disto mas não sabia que também não iria ser saudável. Saudável em termos de sanidade mental, quero dizer. Rapidamente (e dolorosamente, salvo seja) me apercebi de que “as causas” em geral são uma espécie de pasto para, abreviando e chamando os bois pelos nomes, malucos.

O primeiro exemplar de espécie autóctone fez questão de se encontrar comigo para me explicar os seus brilhantes planos: organizar umas “festas” e umas “jantaradas” para promover a ILC (e mais tarde até para recolher assinaturas). Nesses “eventos”, acrescentou ele, juro, eu fique já aqui ceguinho se isto não é verdade, “dava para sacar umas gaijas”.

Caramba. “Gaijas”. Mas que “plano” catita. Tive de segurar o queixo com ambas as mãos e depois foi um sarilho dos diabos para conseguir descolar os maxilares, abrir a boca ao menos para me despedir. Não achei gracinha nenhuma à brincadeira, escusado será dizer, se é que aquilo tinha sido só uma brincadeira.

Não, não tinha sido só uma brincadeira e não tinha sido a sua última, mas a penúltima.  Este mesmo espécimen tinha criado no Facebook (mais) um grupo “contra o acordo ortográfico”, onde pelos vistos já havia uma “guarnição” enorme (mais de 30.000 “membros”, se bem me lembro) e portanto, como acontece por regra aos maluquinhos daquela rede anti-social, desatou a imaginar-se a si mesmo na figura de um General, quiçá um Marechal, com o peito cheio de medalhas e os ombros ornados com dragonas douradas, enfim, ali estava ele a comandar as suas tropas, o seu exército de “30.000 homens”, nada mais, nada menos, ena, isto é El Comandante a magicar, a gente sai daqui à espadeirada, hem, os acordistas até se borram de medo, pst, ó nosso sargento, mande lá tocar o clarim, carrega Benfica, digo, ao ataque meus bravos.

Enfim, interrompamos aqui as elucubrações de Sua Excelência, deixemo-lo continuar a brincar com seus virtuais soldadinhos de chumbo, passemos nós outros ao desfecho, se não isto assim nunca mais acaba, mas que maçada, afinal o que aconteceu a este Marechal das “gaijas”? Bem, certo, abreviemos então o episódio, o Marechal das “gaijas” lembrou-se de ameaçar que avançaria, ele com o seu “grupo”, com as suas próprias “tropas”, caso o texto da ILC não estivesse pronto “dentro de um prazo razoável”; não me recordo se foi esta a exacta formulação do “ultimato” mas escusado será dizer que o Senhor Marechal passou imediatamente à situação de indisponibilidade. Depois ainda estrebuchou um bocado, mas felizmente nunca mais ouvi falar nem dele nem das suas façanhas militares. E parece que o exército de 30.000 “homens” acabou desmobilizado em massa.

Pouco depois deste nada edificante incidente calhou-me outro cromo para a colecção. Este pretendia também organizar umas patuscadas (pelos vistos, sem meter “gaijas” ao barulho),  mas com uma inovação: a coisa seria abrilhantada por ele mesmo, que era músico, e os “eventos” degustativos para o efeito teriam lugar no seu restaurante.

Bom, nada de mais, a coisa até poderia ir avante caso houvesse eventos semelhantes um pouco por todo o país e não por acaso um outro voluntário da ILC estava na altura a tentar organizar vários do género (todos falharam redondamente). Porém, este músico da restauração era co-administrador da página da ILC no Facebook (éramos uns dez, naquela época); ora, ele  decidiu — por sua alta recreação e sem consultar ninguém — em nome da iniciativa e usando a ferramenta de envios de email em massa daquela nossa página, remeter convites a todos os membros*, já então largas dezenas de milhares; convites esses, escusado será dizer, em que promovia muito o restaurante e muito falava do músico, ele mesmo, mas em que pouco  promovia a ILC e nada dizia sobre o AO90 .

Mais uma “baixa”, portanto. A iniciativa não vende nada nem se vende a coisa nenhuma. “As decisões são tomadas por consenso”, era o nosso “contrato” comum, não se tomam decisões à má-fila, não se procede pessoalmente em nome de todos e está absolutamente fora de causa ganhar dinheiro à conta da Causa.

Adiante.

Um fenómeno relativamente recente, surgido com a vulgarização da Internet e em especial desde que foi inventado o conceito de “rede social”, é o das “causas de consumo”. Para haver “causas de consumo”, evidentemente, é necessário que existam “consumidores de causas”. São estes os que se abastecem periodicamente de (mais) uma causa, a qual juntam a outra ou a outras igualmente do seu agrado, por assim dizer, ou usando a nova para substituir uma que já não agrada (isto é raro mas acontece), que passou de moda ou que por algum outro motivo se extinguiu. Há consumidores para toda e qualquer causa, assim como há causas para todos os gostos, há as apetecíveis para espíritos mais combativos, as que encaixam que nem uma luva em perfis mais para o conservador ou no seu oposto diametral, há umas causas mais fofinhas e outras mais rijas e farfalhudas, há as causas cutchi-cutchi e as que têm imenso salero, enfim, isto das causas é uma alegria, uma causa por dia nem sabe o bem que lhe fazia, há por aí causas a granel, meta lá mais uma no bornal (era para rimar com “granel” mas não deu, ora bolas, diz que ele não há cá “bornel”).

Ilustremos o paradigma (ou axioma, vá) com um caso flagrante de “consumidora de causas” que aterrou de pára-quedas na ILC-AO: fazia ela então uma campanha chamada “destrua as ondas, não as dunas” (acho que era qualquer coisa assim, se não era isto exactamente era algo igualmente exótico), até tinha um “blog” sobre a matéria (seja lá isso o que for), até tinha um grupo no Facebook (olha, mas que original, hem, grande surpresa, não estava nada à espera) e até tinha, por fim, uma “ideia” para propor à ILC: ela faria campanha pela ILC e, em troca, a ILC fazia campanha pelas dunas…

Lá terei de dizer isto de novo: não, não estou a brincar, eu cá não brinco em serviço, como é sabido, posso afiançar a pés juntos que a coisa foi esta, toma lá a minha causa pelas dunas, dá cá a tua causa contra o AO90, ou lá o que é.

Uff! Que tareia!

Mas isto foi sempre assim, perguntareis, raios, mas então ele é só levar pela proa com gente estranha, com cromos raros, com malucos uns atrás dos outros?

Não, não, não. De todo. Pelo contrário. Não confundamos o arbusto com a floresta. Isto são apenas excepções, não a regra, felizmente. Na nossa luta há muita gente, portanto é natural que apareça por aí uma ou outra ave rara. Já nas “hostes” acordistas as premissas invertem-se, como todos sabemos: é difícil encontrar no meio deles alguém que tenha conservado um módico de juízo.


Autor da imagem de topo: Henrique Monteiro.

*Na(s) página(s) da ILC-AO no Facebook todos os membros são efectivos, isto é, não há ali aldrabices: ninguém é adicionado por terceiros sem seu conhecimento, todas as adesões são feitas pelos próprios.

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