«O AO90 e a idosa que apostrofou o astrólogo» [Duarte Afonso, Jornal da Madeira]

O Acordo Ortográfico e a idosa que apostrofou o astrólogo

Artigo | | Por Duarte Afonso

 

Em 2005 um Parecer solicitado pelo Instituto Camões à Associação Portuguesa de Linguística relacionado com o acordo ortográfico recomendava “a suspensão imediata do processo em curso, e a manter-se o texto actual do Acordo, Portugal não ratifique o Segundo Protocolo Modificativo”. Qual foi o resultado dessa recomendação? Nenhum!

No dia 8 de Abril de 2009, na Comissão de Ética Sociedade e Cultura da Assembleia da República foi votada uma petição subscrita por 32.000 cidadãos em defesa da nossa língua, chamando a atenção para os malefícios do acordo. O veredicto deu razão aos peticionários.

Qual foi o efeito prático dessa petição? Zero!

De todo o País têm-se levantado imensas vozes alertar para a inutilidade do acordo e para a destruição que está a causar à nossa língua, mas esses alertas têm ido direitos para as gavetas do silêncio dos nossos governantes, anteriores e actuais, e para a do Presidente da República.

O próprio acordo contradiz-se na sua designação, porque nem é acordo e só passará a sê-lo quando for ratificado por todos os países de língua oficial portuguesa. Angola não o ratificou nem vai ratificar como está. Isto significa que o chamado acordo ortográfico é uma mentira.

O acordo impõe um vocabulário ortográfico comum a todos os países signatários. Esse vocabulário é o único válido para esses países mas ainda não foi elaborado. Mesmo sem essa exigência cumprida o acordo já está em vigor no nosso país. Porquê? E para quê tanta pressa?

A finalidade do acordo era unificar a ortografia. Os seus autores até escreveram na nota explicativa o seguinte: “optou-se por fixar a dupla acentuação gráfica como a solução menos onerosa para a unificação ortográfica da língua portuguesa.” (5.2.4).
Esta “não lembrava ao diabo”. Com esta pérola literária os autores do acordo dão uma excelente lição como se escreve bom português, e demonstram claramente o que é a iliteracia. Escreveram o contrário do que defendem. Escreveram uma coisa e interpretaram outra. A dupla grafia não une, afasta, que é bem diferente. A consagração da grafia dupla reflecte a impossibilidade efectiva e incontornável de unificação.

A introdução da dupla grafia além de ser uma trapalhada e afastar o efeito pretendido do acordo que era a unificação, também deu origem à destruição etimológica das palavras.

O acordo foi cozinhado nas costas do povo e imposto ao próprio povo como facto consumado, sem discussão pública. Todos estes factos demonstram bem a democracia em que vivemos.

Ao longo do tempo sempre foram feitos ajustamentos na nossa língua com rigor e inteligência por especialistas competentes, e não com acordos inúteis nem leis abusivas.

Tudo isto faz lembrar a idosa que apostrofou o astrólogo.

Um astrólogo andava numa aldeia a pesquisar os astros. Um dia logo ao esconder do sol, começou a pesquisar numa zona da aldeia onde havia apenas uma casa. Na mesma morava uma viúva já com alguns anos de decadência na sua serena fisionomia, mas essa decadência não lhe inspirava terror assim como a beleza nunca lhe alimentara vaidade.

A certa altura o astrólogo descobriu qualquer coisa no espaço e andou mais alguns metros para ver melhor o que acabara de descobrir. À frente dele estava um poço, mas como ia a olhar para o ar não o viu e caiu dentro dele o que o levou a gritar por socorro.

A idosa assim que ouviu os gritos, correu para o poço com uma corda, atou uma ponta a uma pedra e atirou a outra para o astrólogo. Ele agarrou-se à corda e conseguiu subir até ao cimo do poço.

Quando já estava salvo, mas ainda a tremer com o susto que apanhara a idosa olhou para ele e disse-lhe:
“Por que é que indagas acima da tua cabeça se não consegues ver o que está a teus pés?”.

Também os autores do acordo e os seus defensores já vêem ao longe a nossa língua unificada e altaneira a reinar nas Nações Unidas e a brilhar no Universo, mas não conseguem ver o mal que lhe estão a fazer, nem sequer notam que a mesma está a ser destruída sem dó nem piedade, por esse monte de lixo a que chamam acordo ortográfico.

Duarte Afonso
Romancista

Source: O Acordo Ortográfico e a idosa que apostrofou o astrólogo | Jornal da Madeira

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